segunda-feira, dezembro 27, 2021

Bach, Joahnn Sebastian (1685-1750), de José Ricardo Nunes

Não,
o seu rosto  não foi,
apagado antes, muito
antes de concebermos e logo
à beira de se perder.

O Clavier-Büchlein, que tinha
uma função precisa e não
a cumpriu, a noite
devia circundá-lo, não
apoderar-se, não
foi.

Anna Magdalena voltaria
a encher-se, a morrer
na miséria, a poeira
cega-me e não
foi, também não foi
a minha descendência a tresmalhar-se,
séculos depois
bombas
a arrasarem Leipzig.

A viagem até Lübeck
para ouvir Buxtehude, as massas
sonoras desfaziam a igreja, aglomeravam-se
a uma cadência rotativa,
fantasiosa,
essa jornada não
foi.

E nem sequer eu
fui, de corpo inteiro reclamar
existência, a exigir
melhor salário,
condições compatíveis.

Eu
jamais,
a música.

Na noite em que ouvi
pela primeira vez
o som atravessar-me e vacilei,
apesar da violência não
foi.

Biografia, circunstâncias,
nada
me prendeu ao transitório.
Esquece Forkel e o Nekrolog.

Não foi
uma escolha entre a vida e a morte.

A compenetração,
uma caminhada em Mühlhausen,
o silêncio que me embaraçava
depois de Zimmermann encerrar o estabelecimento,
nada disso.

''A música é só música'',
a música não,
nada.´

https://www.youtube.com/watch?v=K59Eh273QXo

José Ricardo Nunes, «Compositores do Período Barroco, 2011-2012», Deriva Editores, junho de 2013, pág. 114
Foto de Margarida Araújo