terça-feira, junho 03, 2025

«Os Sonâmbulos», Hermann Broch

 

Relógio D'Água, 2018. Tradução de António Sousa Ribeiro
Numa entrevista datada de 1962, ao Jornal de Letras e Artes, Mário Cesariny, talvez muito mal-disposto, classifica Hermann Broch como um mau romancista, colocando-o ao lado de um Sade, de um Melville, de um Jünger, de um Proust, de um Kafka, de um Lautréamont, de um Genet e de um Jarry, entre outros. Claro que não poderia faltar um mau poeta para ser comparado a Broch: Fernando Pessoa! Não sei o que diria o autor, falecido em 1951, se se visse comparado a estes nomes, mas no caso dele não me sentiria, de modo algum, frustrado. E Cesariny é um grande poeta. 

Hermann Broch escreveu três romances de uma trilogia a que deu o título geral de «Os Sonâmbulos» constituída  por «1888 - Pasenow ou o romantismo», «1903 - Esch ou a anarquia» e «1918 - Huguenau ou a objectividade». Um período histórico que não é um acaso: situa-se entre a ascensão de Guilherme II até ao final da I Guerra.

Quando chegamos ao fim da trilogia sentimos já alguma nostalgia de não podermos continuar a analisar a verdadeira saga de personagens que povoam e se cruzam nestes três romances. Hermann Broch convive com a técnica da narrativa, juntamente com alguma poesia, considerações pessoais e pensamento disperso. É, talvez, neste último aspecto, que Hermann Broch, talvez contraditoriamente, se encontra mais débil e mais solto. É um pensador humanista, não um filósofo no sentido da criação de uma estrutura lógica de pensamento novo, mas interessante de estudar porque descreve pormenorizadamente e de uma forma magistral as personagens que pontificaram na República de Weimar. Talvez seja por isso que Hanna Arendt o prefaciou postumamente (em vida poucos o conheceram como escritor) e teve igualmente o reconhecimento tardio de Thomas Mann que o comparou a Musil. Estão a verificar este vaivém de considerações póstumas entre um Cesariny e estes últimos. Adiante, que isto vale pouco. 

Hermann Broch dá-nos a sua visão de uma cultura política e social alemã em decadência rápida de valores e de pontos cardeais seguros sobre o império que se esboroa e o fim da I Guerra Mundial. Todo um pathos que vai levar a uma ascensão do nazismo e do totalitarismo que ele conheceu bem, tendo escapado por pouco à morte quando foi aprisionado por aqueles. Talvez por isso, coloque geograficamente o romance na Alsácia, mais concretamente na cidade de Trier, terra natal de Marx, que mudou de mãos variadíssimas vezes entre franceses e alemães. Trier é também Trèves. As personagens são esmiuçadas até ao limite por Broch e é esse facto que mais interage com a cumplicidade do leitor. Nelas vemos um Bertrand cínico, rico, burguês, que esconde a sua homossexualidade maltratando psicologicamente as mulheres com quem se cruza ou que se cruzam com os seus amigos; von Pasenow, militar de carreira apaixonado por uma prostituta, Ruzena, que abandona na pior das misérias, para continuar a casa de família, casando por interesse e que reaparece no terceiro romance completamente derrotado pela inversão de valores que não consegue compreender; Erch, um anarquista que deixa de o ser para abraçar a bíblia evangélica, protestante; Huguenau, um arrivista, desertor, assassino de Erch, que monta o elevador social com um sucesso material e moral imenso. É ele a quem Broch dá um exemplo máximo do que é um protagonista, um actor grandiloquente do totalitarismo.

Dir-me-ão que a descrição desta narrativa é mais do mesmo. Em Hermann Broch, não. O facto de a trilogia ser chamada de «sonâmbula» não é pelo facto destas personagens estarem adormecidas ou num sono hipnótico conforme as circunstâncias políticas, ou fosse do que fosse. É porque mudam consoante os ventos e não lutam para que os factos sejam outros. Não agem. Não produzem ideias que possam transformar em acção, como diria o muito citado Hegel, a quem Broch dá uma primazia especial (também não falta Kant ou Fitche). Há uma personagem, contudo, a que dei talvez demasiada atenção no último romance, aquele em que tudo arde, o mais terrível, em que o fim da guerra se transforma numa revolução, quando da tentativa soviética de 1918: essa personagem é Hanna Werdling. Leitora compulsiva, bela, casada com um marido ausente na guerra, comporta-se como uma espécie de máquina sexualizada quando ele vem de licença, sem qualquer efusão sentimental. Não nutre sensibilidade alguma, talvez um amor distante pelo filho adolescente, mas nem isso a demove de estar distanciada de tudo, de todos, numa enorme casa, cujo jardim a chama constantemente para que observe a mudança única que vê: a da Natureza. A própria natureza mata-a com a gripe «espanhola», também ela uma das epidemias de 1918.

Deixemos Broch dizer ao que vem: «Este romance assenta no pressuposto de que a literatura tem como missão ocupar-se, por um lado, daqueles problemas humanos que são rejeitados pela ciência, por não serem minimamente acessíveis a um tratamento racional e apenas levarem uma vida aparente num jornalismo filosófico moribundo, e, por outro lado, daqueles problemas que a ciência, no seu progresso mais lento, mais exacto, ainda não abarca. O património da literatura, entre o 'já não' e o 'ainda não' da ciência, tornou-se, assim, mais limitado, mas também mais seguro e inclui todo o domínio da experiência irracional, situando-se, mais precisamente, no terreno fronteiriço em que o irracional se manifesta como acto e se torna possível exprimi-lo e representá-lo. Daí resulta a tarefa específica de mostrar como o onírico determina a acção e como acontecer está constantemente pronto a deslizar para o onírico.» (pág.8)

Ler os autores de cultura alemã que descrevem o império e, depois, a República de Weimar é uma lição actual, em que a realidade, tantas vezes analisada por Hermann Broch, se funde com o irracional como demonstra o texto acima. O onírico pode transformar-se rapidamente (mais depressa do que julgamos possível) num pesadelo em que ninguém sai ileso. A resistência queda-se perante o absoluto do totalitarismo, porque há o sonambulismo das massas e, dentro delas, a individualidade pouco mais é do que um arrobo, uma mentira que se vende a quem dá mais por ela, pela subjugação do tal mal de que fala Arendt.

alc