quarta-feira, julho 09, 2025

"Intelectuais Portugueses e a Ideia de Esquerda num Tempo de Transição (1968-1986)",João Moreira

 

Afrontamento, 2025
Um dos mais estimulantes ensaios sobre a Esquerda e o seu passado, não tão distante assim quanto o título supõe, tendo em conta que alguns dos pressupostos e ideias das três personagens, aqui retratados na capa do livro, ainda continuam vivos, mesmo com outras linguagens e propósitos. Deve-se isto a João Moreira que, antes, já tinha prefaciado um livro de João Martins Pereira «Portugal e a União Europeia» e que aqui demos conta ( Deriva das Palavras: Resultados da pesquisa para João Martins Pereira ); este estudo debruça-se sobre o caminho teórico e ideológico percorrido por Eduardo Prado Coelho, António José Saraiva e João Martins Pereira entre 1968, início da tão fugaz como enganadora «primavera marcelista», e 1986, data da nossa entrada na União Europeia, no fundo, o corolário da normalização capitalista e democrática. 

O que torna ainda mais interessante este estudo é propormo-nos, ao mesmo tempo da sua leitura, um exercício subjetivo e individual de  colocarmo-nos (a nós que vivemos na adolescência a revolução de 1974-75) sob o olhar de um jovem investigador que observa criticamente o percurso, nem sempre óbvio ou muito linear, das esquerdas a que estes pensadores deram forma e que, de uma certa maneira, pertenciam. Resultado deste teste: nós estamos todos lá e são centenas de milhares os que sentiram politicamente o tapete fugir-lhes debaixo dos pés, os que procuraram sofregamente alternativas que muitas vezes se transformaram em fugas para a frente ou becos sem saída. A(s) Esquerda(s) ainda hoje paga a tergiversações a que foi sujeita após os anos 80 proclamarem o «there is no alternative» de Thatcher e Reagan e o liberalismo subsequente. Dá vontade de dizer que nós somos eles, mesmo que por pouco tempo ou em alguma circunstância que vivemos intensamente e que já reservamos para nós próprios em memórias fugidias.

Profusamente anotado e com transcrições de cartas e artigos de opinião de António José Saraiva, Eduardo Prado Coelho e João Martins Pereira, João Moreira consegue, de um modo notável e fruto de um trabalho meticuloso, dar-nos uma perspectiva clara de percursos extremamente difíceis de distinguir no campo da esquerda e que só revelados com citações e influências, muitas das vezes exteriores, como, aliás, é uma constante do intelectual português. A conjuntura sócio-política quer no mundo, quer em Portugal, também aqui não é esquecida o que esclarece, sem alguma dúvida, algumas das posições mais problemáticas assumidas por alguns dos protagonistas.

Não se pode imaginar a esquerda em Portugal sem o manto protetor da PCP. Em 1968, ainda pontificava a sua influência nos intelectuais portugueses, não sem que o maoísmo, o trotskismo, a onda libertária do Maio 68, ou a luta armada, lhe tivesse corroído os seus alicerces ideológicos. Quer António José Saraiva, quer Eduardo Prado Coelho foram militantes do PCP, embora em períodos diferentes, até pela diferença de idades entre um e outro. O primeiro foi, talvez, o que deu a maior volta na sua vida política, principiando na ortodoxia pura para um apoio tardio à política autoritária de Salazar. Pelo meio, atravessou várias fases, como João Moreira demonstra principalmente nas cartas ao seu amigo e militante comunista Óscar Lopes e na revista Raiz e Utopia, só para utilizar dois exemplos dos muitos que o livro nos dá. Eduardo Prado Coelho, inicia o seu militantismo no PCP já após a Revolução e mostra-se sempre anti-estalinista e heterodoxo, o que não deixa de criar alguns escolhos em camaradas de partido e mesmo no sector intelectual. Em 1976 já não se encontra militante do PCP, enveredando pela construção de uma alternativa entre o PC e o PS e levando-o ao MES, à FSP, ao GIS, à UEDS e, talvez já cansado, ao eanismo e, finalmente, ao PS. Não deixa de ser importante verificar que os quatro primeiros partidos referidos tiveram a coragem de se autodissolver pelas impossibilidades práticas de continuarem o seu caminho. No meio desta viagem, o debate e as ideias que eram uma constante dentro das esquerdas, foram apresentadas de uma maneira primorosa pelo trabalho de João Moreira. Verificamos, nesse estudo, o verdadeiro vigor intelectual das esquerdas e, paradoxalmente, a sua própria fraqueza organizativa. E é aqui que entra João Martins Pereira, o único que embora não pertencesse ao PCP e nunca tivesse sido seu militante, foi secretário de estado da economia do IV Governo Provisório, tendo-se demitido alguns meses após a experiência. É também ele que apresenta uma lucidez e uma crítica que o coloca entre os maiores intelectuais portugueses desde os seus escritos em «O Tempo e o Modo», passando pela redacção da «Gazeta da Semana» e «Gazeta do Mês» até à publicação do arrasador «No Reino dos Falsos Avestruzes» em 1986, data-limite deste ensaio. Nunca deixou de ser marxista crítico, a forma mais óbvia e honesta de ser «marxista». 

É notável igualmente, observar criticamente o percurso paralelo que muitos militantes da esquerda (hoje muito conhecidos nos media e na política) fizeram diretamente para a direita e para o poder, em pouquíssimo tempo e com os mesmos argumentos da chamada «nova direita» francesa que coincidia com as teses liberais da «nova esquerda» da revista «Risco»: «...a esquerda morreu e tem consigo o germe do totalitarismo». Talvez seja mesmo uma notícia de morte um pouco exagerada.

Não se pense, contudo, que estamos perante datas estritamente limitadas. João Moreira consegue dar-nos uma visão geral do mundo cultural e intelectual envolvente a que Portugal esteve criminosamente alheio durante o salazarismo e o «volte face» do marcelismo optando pela continuação da guerra colonial e a chantagem da extrema-direita, saudosa dos velhos tempos da repressão e terror do salazarismo. Mais uma vez, no campo das ideias, Portugal chegou atrasado, tíbio. E a oposição democrática, a Esquerda e, mais tarde, o período da Revolução de 74/75 vai refletir as divisões, as incompreensões, as tragédias que as esquerdas conheceram até hoje. Talvez conhecer estes percursos nos deem mais uma ferramenta de análise para criar todas as utopias, mesmo que alguns de nós as tenham abandonado, porque a aceitação do real não será muito melhor opção. É isso que faz igualmente a atração pelas coisas novas, pelas tais «novas subjetividades» igualmente referidas neste livro notável de João Moreira.

alc