Penguin Clássicos, 2025. Tradução de Isabel Castro Silva
Uma das razões, talvez a mais importante mas não única, que me leva a ler Virginia Woolf é a sua escrita. Embora este livro tenha sido a compilação e adaptação de uma conferência de dois dias, em Londres, no ano de 1928, a fluidez do discurso é notável, tal como a inteligência viva dos argumentos que Virginia Woolf utiliza para desmontar uma sociedade patriarcal e catedrática, não completamente diferente dos dias de hoje. O que nos deve preocupar é a actualidade do que ali se afirma e da misoginia que entretanto voltou todas as suas armas, antes escondidas, para um chamado «anti-wokismo» (não gosto da expressão ''woke'') cuja pretensa crítica mais não é do que a tentativa de travar qualquer superação das liberdades conquistadas, séculos fora. Ela dá exemplos dramáticos dos ataques de que eram objecto não só as mulheres, mas igualmente tudo o que não fosse branco, homem e cristão. A poesia e a literatura, tal como nos dias de hoje, também sentiram estas ondas de ódio. E tomar conhecimento das propostas apresentadas pelos seus defensores não deixa de ser uma viagem ao pior dos pesadelos.
«Um Quarto só Seu» não é somente uma vindicação feminista. É muito mais do que isso: é uma lição sobre a seriedade que devemos à literatura. É uma aula extraordinária aos leitores (escrevo isto quando se divulga, publicamente, que 53% dos portugueses não leram um só livro em 2024!!) e uma resenha sobre a necessidade de circunspecção e recolhimento para quem escreve, coisa que para as mulheres era, tão-só, impossível de satisfazer, isto pelo menos até ao século XIX. O facto de Virginia Woolf o fazer, uma coisa aparentemente simples como escrever, era porque uma sua tia, ao cair de um cavalo e morrendo em virtude (!) da queda, lhe deixou 500 libras por mês até ao fim dos seus dias. E não era casada, nem tinha filhos, tendo o privilégio de um quarto sossegado para a escrita e não a sala de visitas ou de estar de uma casa. Percebemos, no final desta leitura extraordinária, que não é de somenos. E ela dá exemplos concretos em frases interrompidas em Charlotte Brontë, em «Jane Eyre», com a desenvoltura literária, ainda que escondida dos seus amigos e familiares, de uma Jane Austen. Já para não falar da proibição de mulheres entrarem em bibliotecas públicas para pesquisarem o que bem entendessem, sem serem acompanhadas por mestres ou professores, como aconteceu a Woolf em Oxbridge [cidade universitária imaginada, mas seria a junção de Oxford com Cambridge].
«Voltei pois à minha pousada e, enquanto percorria as ruas escuras, ponderava isto e aquilo, como se costuma fazer no final de uma jornada de trabalho. Perguntei-me por que razão Mrs. Seton não tinha dinheiro para nos deixar; e no efeito que a pobreza tem no espírito; e pensei nos estranhos velhos cavalheiros que vira nessa manhã com abafos de peles pelos ombros; e recordei como, a um assobio nosso, eles vinham a correr; e pensei no órgão a estrondear na capela e nas portas fechadas da biblioteca; e pensei como é desagradável ficar trancada do lado de fora; e pensei que é talvez pior ficar trancada do lado de dentro; e, pensando na segurança e prosperidade de um sexo e na pobreza e insegurança do outro e no efeito de tradição e da falta de tradição no espírito de uma escritora, pensei por fim que era tempo de arregaçar a pele engelhada do dia, com os seus argumentos e as suas impressões e a sua cólera e o seu riso, e atirá-la para a sebe. Parecia-me estar sozinha em companhia inescrutável. Todos os seres humanos estavam deitados a dormir - de bruços, horizontais, mudos. Nas ruas de Oxbridge ninguém parecia mexer-se. mesmo a porta do hotel abriu de rompante ao toque de uma mão invisível - era tão tarde que não havia sequer um moço de recados acordado que me alumiasse o caminho até ao quarto. (pags.34/35)
«E com aquela inquietude com que se tiram e se voltam a pôr livros na prateleira sem olhar para eles, comecei a vislumbrar uma era futura de pura virilidade assertiva, uma era que as cartas de certos professores (as cartas de Sir Walter Raleigh, por exemplo) parecem prenunciar e que os governantes de Itália [de Mussolini] já puseram em prática. Pois é difícil não se ficar impressionada com a masculinidade não mitigada em Roma; e, qualquer que seja o valor da masculinidade não mitigada no Estado, podemos questionar o seu efeito sobra a arte da poesia. Em todo o caso, segundo os jornais, há uma certa ansiedade sobre a ficção em Itália. Decorreu um encontro de académicos com o objetivo de ''desenvolver o romance italiano''. ''Homens famosos pelos seus apelidos ou na alta finança ou na indústria ou nas corporações fascistas'' reuniram-se no outro dia e discutiram o assunto e enviaram um telegrama ao Duce manifestando esperança ''de que a era fascista dê luz dentro em breve uma poesia digna do seu nome''. Podemos todas juntar-nos a essa esperança piedosa, mas é de duvidar que a poesia possa sair de uma incubadora. A poesia deve ter uma mãe além de um pai. O poema fascista, receio bem, será um pequeno aborto hediondo, como aqueles que vemos em frascos de vidro no museu de uma qualquer cidade de província. esses monstros nunca vivem muito tempo, ao que se diz; nunca se viu um prodígio dessa espécie a cortar erva num campo. Duas cabeças num só corpo não duram uma vida inteira.» (pág.139)
alc