Língua Morta, Outubro de 2022
«(...) Ríamos para afastar o mal que o destino podia fazer às pessoas felizes. Felizes como nós, filhos da revolução e, sem sabermos, de nós mesmos. Por vezes, debaixo do sol tórrido, sem mais nada para fazer, observávamos o tempo a chegar. Bastava-nos isso e a hora de ir comprar gelados ao minimercado Europa que ficava do outro lado da rua. O pequeno entreposto comercial era palco de grandes ambições. Um projecto familiar trazido de uma aldeia do interior do país que pertencia a um tempo não muito distante. Pois ali vivia o homem concreto no seu verdadeiro habitat. as tarefas diárias limitadas ao tempo, ao horário do expediente e ao plástico colorido gerido por um afável capitalista do bairro cujo propósito era o do enriquecimento rápido, de modo a aspirar a todos os prazeres que o dinheiro pudesse dar. Os raciocínios de vinha-d'alhos de uma filistina fé não apresentavam o menor desvio ao conservadorismo judaico-cristão. Ali não houve revolução nenhuma. Todo o animal procura o seu sentido de viver, é verdade. De que valem as grandes filosofias da existência se o conforto do plástico é superior à alienação que o trabalho fomenta? De que vale a máquina que libertou o homem da escravatura da labuta se o atirou para um mundo de fumo onde apenas se vislumbram sombras e silhuetas? A mercadoria confunde-se com o trabalhador, tudo tem um preço. Sem exploração não há lucro. E o lucro que vem a ser? Palavras supostamente sábias, ditas vezes sem conta pelo pai do Quirino em palestras gratuitas à porta do minimercado Europa. O pessoal mais novo à volta dele, a chupar Olás, a ouvi-lo. (...)» (págs.54,55)
E o romance de José Miguel Gervásio continua nesta toada. No final, todos nós achamo-nos como os putos a ouvir o comentador Quirino à porta de minimercados em fervorosos raciocínios em vinha-d'alhos. É o que mais há por aqui, ainda com o nome faiscante de Europa à nossa porta, entretanto escancarada para todas as soluções mirabolantes que a sociedade nos impingiu de grosso modo. Para consumir, de preferência, frescas. Como os gelados que chupamos em frente a televisores.
Uma leitura a não perder.
alc