sábado, junho 14, 2025

«A Estação da Sombra», Léonora Miano

 

Antígona, Outubro de 2015. Tradução de Miguel Serras Pereira
Não é um livro qualquer, este «A Estação da Sombra», da camaronesa Léonora Miano. A sua obra baseia-se na tradição oral africana, talvez situada no século XVI ou XVII, que ainda sobrevive sobre o terror da escravatura a iniciar então a sua acumulação primitiva de lucros baseada na extracção violenta de homens, mulheres e crianças. Essa tradição oral foi estudada não só pela memória existente através de gerações, e, felizmente, bem viva nas sociedades africanas ainda hoje, mas também pela acção da Société Africaine de Culture e da Unesco conduzida principalmente no Benim, no Gana e nos Camarões. Mas poder-se-ia alargar a todas as zonas onde o comércio escravo prosperou. 

O romance leva-nos a uma realidade esmagadora: o sofrimento indescritível das pessoas apanhadas nas teias (literalmente, em redes) da escravatura e do aprisionamento, e igualmente na desconstrução das estruturas políticas africanas baseadas quer em monarquias hierárquicas com as Bwele que aumentaram o seu autoritarismo e discricionaridade desde que iniciaram os contactos com os brancos que exigiam um comércio de captura de inimigos que até aí não o foram nunca, como os Mulongo onde, embora existindo um chefe, o conselho de anciãos era o que detinha efectivamente o poder. Na destruição completa deste último povo centra-se o romance de Léonora Miano em páginas de grande beleza mística que se intercala com um horror sentido por quem não compreende o que se desenrola à frente dos seus olhos, destruindo a unidade familiar, social e económica de comunidades que se julgavam seguras e em paz. Esse horror que vinha em grandes velas brancas sopradas pelos ventos de pondo (norte) num oceano indescritível e terrífico, fim do seu mundo conhecido.

No entanto, a esperança residia, talvez metaforicamente, num povo que se reconstituiu nos confins de um grande rio, cercado por pântanos inacessíveis e onde se encontravam todos os povos fugidos da escravatura e da captura humanas para serem vendidos em hasta pública em países longínquos onde se dizia habitarem homens brancos sem alma, visto que só viam a riqueza no ouro, na violência e no comércio: era a povoação recém-formada dos Bebayedi. Povos em fuga, sem história, mas resistente nas suas múltiplas tradições, solidário, compreensivo para com as múltiplas línguas e falas que se fixa, nas margens de um grande rio que lhe traz a riqueza que necessita e nada mais do que isso.

«Não foi unicamente por cima da cabana daquelas cujos filhos não foram encontrados que a sombra se suspendeu por um tempo. A sombra está por cima do mundo. A sombra impele as comunidades a enfrentarem-se, a fugirem da sua terra natal. Quando tiver passado o tempo, quando as luas se tiverem sucedido às luas, quem guardará a memória destas dilacerações? Em Bebayedi, as gerações por nascer saberão que fora necessário fugir para escapar às aves de rapina. Ser-lhes-á dito o porquê destas cabanas levantadas sobre as águas. Ser-lhes-á dito: 'A desrazão apoderara-se do mundo, mas alguns recusaram-se a habitar as trevas. Vós sois a descendência dos que disseram não à sombra.'» (pág.135)

alc