Antígona, 1993. Tradução de Júlio Henriques
Um ano após esta edição da Antígona, Guy Debord suicida-se numa casa de campo de Auvergne já afastada da «sua» Paris, segundo ele, e creio que por todos nós, em ruínas amontoadas pelo lucro, pela urbanização precursora de uma alienação sem limites, pela gentrificação contemporânea que ele não veio a conhecer nesta dimensão tão brutal como ela é hoje e que é observada por todas as cidades europeias.
De qualquer modo, Guy Debord continua irrecuperável pelos media. Este «Panegírico» é de consultar de tempos a tempos, para entender de como é feita essa impossibilidade, baseada no desprezo profundo por uma sociedade que o não soube ser, recusando a felicidade e a deriva da liberdade total. Neste momento, em que as soluções fascistas repugnantes andam de braço dado com a especulação do lucro sobre os nossos corpos, promovida pelos estados e tornando-nos mercadorias para venda e troca, ainda há quem abrace, com denodo incontido, o estado a que se chegou. Um panegírico é livre de toda a crítica ou censura como nos lembra Debord. É ele mesmo, sem quaisquer laivos de interpretação.
«Aqueles que a respeito de nada querem escrever depressa o que ninguém lerá uma só vez até ao fim, nos jornais ou nos livros, gabam com grande convicção o estilo da linguagem falada, por o acharem muito mais moderno, directo, fácil. Mas eles próprios não sabem falar. Os seus leitores tão-pouco, visto a linguagem efectivamente falada nas modernas condições de vida ter socialmente chegado a um resumo da sua representação, eleita em segundo grau pelo sufrágio mediático; somada, dará umas seis ou oito maneiras de falar, incessantemente repetidas, e menos de duas centenas de vocábulos, nestes incluindo uma maioria de neologismos; vendo-se a terça parte deste conjunto sujeita a renovação de seis em seis meses. Tudo isso favorece um certo rápido liame. Por meu lado, e pelo contrário, vou escrever sem afectação e sem canseira, como a coisa mais natural e mais fácil do mundo, a língua que aprendi e na maioria das circunstâncias sempre falei. Não sou eu que tenho de a modificar. Os Ciganos consideram com razão que só podemos dizer a verdade na nossa própria língua; na do inimigo deverá reinar sempre a mentira. Outra vantagem: tendo como referência o vasto corpus dos textos clássicos publicados em francês ao longo dos cinco séculos anteriores ao meu nascimento, mas sobretudo nos dois últimos, será sempre fácil traduzirem-me convenientemente em qualquer idioma do futuro, mesmo quando o francês já for língua morta.» (pág.17/18)
«(...) Todas as revoluções penetram na história, e nem por isso a história está pejada delas; os rios das revoluções voltam aonde começaram, para de novo fluírem.» (pág.32)
«(...) Quando ''ser absolutamente moderno'' se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, aquilo que o honesto escravo acima de tudo receia é que o possam suspeitar de passadista.» (pág.75)
Infelizmente, o aumento de escravos honestos nas sociedades modernas é directamente proporcional ao número das tiranias que surgem por todo o mundo. Sobre a escravidão moderna citarei Agamben que sobre Debord afirmou: «Os livros de Debord constituem a análise mais lúcida e severa das misérias e escravidões de uma sociedade - a do espectáculo, em que vivemos - que nos nossos dias estendeu o seu domínio a todo o planeta. Como tais, os seus livros não precisam de ser esclarecidos nem elogiados, e ainda menos necessitam de um prefácio.» (Da badana do livro).
alc