quarta-feira, abril 23, 2025

«Trilogia da Cidade de K.» Agota Kristof

 

Relógio D'Água, 2021. Tradução de António Gonçalves
«Eu nunca terei paz!», afirma Lucas no primeiro livro desta trilogia intitulado «O Caderno Grande». Segue-se «A Prova» e «A Terceira Mentira» escritos pela húngara Agota Kristof falecida em 2011, na Suíça. Já editada em Portugal em 1986 é, contudo, a partir de 2000 que alcança alguma notoriedade entre nós pelas editoras Asa, Nós e Cavalo de Ferro. Esta tradução é revista por António Gonçalves, pela Relógio D'Água e junta os três livros antes editados separadamente com o nome de «Trilogia da Cidade de K.» o que terá toda a lógica visto que fazem parte do que a autora entendia ser uma saga que narra a «trilogia dos gémeos».

Voltemos à frase de Lucas «Eu nunca terei paz!» num dos muitos diálogos desenvolvidos pelas personagens que se vão revezando numa espécie de vertigem teatral onde temos dificuldade em distinguir o real do imaginário. Essa densidade vai tornando-se mais opaca quando transitamos a leitura entre os livros. Entre a opacidade psicológica das personagens, principalmente de Mathias e de Lucas (nomes de evangelistas que, creio, não existirem por acaso), os gémeos, dá lugar a uma abertura extraordinária, quase de revelação última, se a autora assim o quisesse. Contudo, volta-se a entrar e a sair de zonas sombrias para uma pura iluminação pessoal. É um livro fortemente impressivo que impõe uma opção clara entre o mal e o bem, mesmo sabendo que se cruzam, que interagem entre si, que todas as personagens do livro, algumas delas decisivas, trazem essa passagem, promovem um ciclo intransponível de actos que se sucedem e se revelam muito para além dessa dicotomia. A crueldade elevada ao extremo, a rudeza de quem já viu tudo, de quem não pode acreditar, de todo, na humanidade encontram-se com a disponibilidade solidária, com o amor, com o desejo, com a preocupação desinteressada com o outro. É evidente que estamos perante um clássico da literatura. 

Sabe-se pouco, sobre a vida de Agota Kristof (Ágota Kristóf, com a acentuação e grafia originais). Pelo menos sobre o que pesquisei e encontrei. Esta trilogia, que recomendo a todos lerem, inicia-se antes da II Guerra Mundial, atravessa-a; aliás, os húngaros atravessam-na com dois exércitos de ocupação antes e depois da guerra e sofrem com esse movimento quase tectónico de mortes, fome em extremo, vinganças, armas, soldados, abusos, mudanças obrigatórias, fugas permanentes para todo o lado. A zona de fronteira é uma miragem, uma zona tampão, e é lá que os gémeos vivem. Tudo ali se passa num universo concentracionário, vigiado, que os diálogos extremamente contidos entre as personagens nos dão a sentir. No fundo, nada é o que parece, tudo se transforma em coisa má, ou, dentro do mal, arranja-se sempre uma solução onde predomina o auxílio, a partilha e o sentido de comunidade. Não se pense, todavia, que é um livro sobre a guerra. Também o é, visto que a autora não se pode apartar da sua própria vida (nasceu em 1935), mas não se pode esquecer que ela tinha 21 anos em 1956, ano da invasão do Pacto de Varsóvia à Hungria, a primeira grande resistência à burocracia que a morte de Estaline, três anos antes, não modificou. Foi na leva de 200 mil refugiados que abandonaram a Hungria nessa altura, deixando para trás dezenas de milhares de mortos e um país traumatizado, sem entender a repressão sobre operários, camponeses e estudantes que exigiam uma vida melhor e que esse estado não conseguiu sequer equacionar. Com 21 anos acredite-se que não se esquece facilmente uma revolução. Sabemo-lo. A história da trilogia pára no final dos anos 80 após a queda do Muro, sem que Agota Kristof, em determinadas linhas, não dê conta igualmente da desilusão do modo de vida ocidental, demasiado preocupado com o dinheiro e com a solidão. Fica-nos uma espécie de nostalgia por uma vida comunitária de pequenas cidades, de vilas e de aldeias com uma coesão firme, com uma cola social que pensaríamos indestrutível. Não obstante, tudo morreu com o fim dos gémeos e do recomeço de guerras surdas que exigem seguir a sua própria lógica de destruição/reconstrução/repressão. A possível verosimilhança, a realidade que a autora nos propôs é, paradoxalmente, o título do último livro da trilogia: «A Terceira Mentira». Inesquecível.

ps: um obrigado muito especial à Inês Lampreia que me apresentou este livro excepcional.

alc

segunda-feira, abril 14, 2025

«O Triunfo da Morte», Gabriele D'Annunzio

 

Minotauro, 2018. Tradução de Celestino Gomes
Um decadentista romântico tardio como Gabriele D'Annunzio chamava-me, há muito, cada vez que eu ia a uma livraria. «Qualquer dia, leio-o» era um mantra constante quando eu via a lombada de «O Triunfo da Morte». Corto Maltese dizia, através do seu autor, Hugo Pratt, que qualquer dia acabaria de ler «A Utopia» de Thomas More e, que eu saiba, «morreu» sem o conseguir. Também podem pensar: «Mas este tipo só lê fascistas?», embora não haja a certeza que D'Annunzio o seja ou que o número de fascistas que li é ínfimo, mesmo contando com o actual Houellebecq. Portanto, entrar-se-ia numa polémica que não terá aqui lugar, se o autor era ou não um deles. Pouco interessa. O que vale num pequeno artigo sobre este livro é que este autor anunciou claramente o fascismo sem precisar de nomeá-lo, mas pensou-o, delimitou-o ideologicamente, romantizou-o. O livro foi escrito em 1894, quando a demo-liberalismo entrava em decadência absoluta e defende, contudo, a entrada na I Guerra ao lado dos Aliados e a Itália tergiversa: primeiro, ao lado dos alemães e austro-húngaros e depois ao lado dos Aliados durante a própria guerra. Mau augúrio político que vai pagar caro nas conferências de paz. D'Annunzio combateu nas fileiras do exército e em 1918 ataca e ocupa Fiume com um grupo de apaniguados que, mais tarde, Mussolini exalta. Os tratados ignoram as pretensões italianas e Fiume, agora novamente austríaca, cai. O fascismo italiano impõem-se em 1922. O que tem isto a ver com o livro? Tudo.

Nietzsche só é citado uma única vez no início do livro, embora isso nada prove. O filósofo, como sabemos, estava longe de qualquer pretensão política totalitária. No entanto, estranhamente, atribui o conceito de super-homem a Goethe! Giorgio e Ippolita são as personagens. Longe da moral vigente, poder-se-ia dizer que estamos na presença de uma obra que foge aos trâmites burgueses. É certo que sim, mas pelo lado de uma aristocracia que pode, deve, ter o poder total sobre as classes estando acima delas. Apresenta um desprezo total pelas massas, pelo dinheiro, pelo povo, pela religião cristã ou outra qualquer. Até pela racionalização filosófica: «Pensas demais!» dirá Ippolita, em fuga de um casamento falhado e amante de Giorgio que atinge paulatinamente a felicidade na ideia de morte, no pensamento da morte, no espectro da morte. Este odeia o seu pai, um burguês rico mas falido, não encontra paz na família, mas na sua própria individualidade e na violência do seu pensamento: «Era, na vida, como um navio que soltava todas as velas à tempestade». Ou então: «Este homem intelectual, sabe-se lá por que influxo da consciência atávica, não podia renunciar aos sonhos românticos de felicidade. Este homem sagaz, apesar de ter a certeza de que tudo é precário, não podia furtar-se à necessidade de buscar a felicidade na posse de outra criatura. Ele bem sabia que o amor é a maior das tristezas humanas...» 

É assim que ele vê, que sente as outras criaturas: como suas, pertencendo-lhes totalmente para as dispor consoante o seu desejo que está longe do carnal. A mulher é um objecto em nada virtuoso. Sagrado ao princípio, torna-se inútil quando ele se farta, vê-a «como o Inimigo» que o fragiliza na sua virilidade, na sua força intelectual, na possibilidade de vencer o mundo. O povo é visto como uma massa demente, suja, que se arrasta em volta dos ídolos do cristianismo e, ao mesmo tempo, paradoxalmente para ele, que festeja a força da natureza no arranque da primavera, nas festas paganizadas de uma ruralidade pura, que revivifica a natureza em ciclos dionisíacos. Tal como a guerra. Tal como a morte libertadora. Giorgio sofre agora com a ausência de um chefe condutor que para si foi um seu tio, Demétrio, que se suicida. Ele segue-lhe o rasto. Fá-lo, atirando-se de um precipício e assassinando nesse último voo, Ippolita.

Calha-me dizer que sim: D'Annunzio é um fascista antes do tempo e Mussolini abraçou-o sem que aquele alguma vez tenha aderido ao PNF. Para quê? «O Triunfo da Morte» é um clássico, incontornável e a literatura deu-lhe a possibilidade de evitar qualquer apresentação panfletária de um programa. Mas toda a ideologia fascista está contida em «O Triunfo da Morte». 

Por que razão o li? Por uma questão que me parece ser essencial nos dias que correm: o fascismo contemporâneo aparenta ser pobre ideologicamente e os intelectuais ainda resistem ao seu chamamento, mas os principais pressupostos estão nos seus ódios e que coincidem neste livro de 1894: o povo, essa entidade heterogénea que admite dentro de si uma luta de classes que não terminou, um ódio particular e explícito às mulheres, ao livre arbítrio individual, à liberdade e à paz. Não é Giorgio que diz pela mão de D'Annunzio que perante um povo amorfo, crente, pobre, rastejante é nas cristas das ondas que se vê o poder dos fortes, verdadeira metáfora fascista para o poder das elites? 

Estejamos certos que os tempos estão extremamente perigosos e que a caixa de Pandora da guerra e da arbitrariedade política está aí ao virar da esquina. 

Veneza


 



Milão

 





Florença

Florença, um dos pólos culturais mais significativos da chamada civilização ocidental apresenta, orgulhosa e impante, as cenas de violência comuns cá na casa: cacetadas de porrete, facas afiadas, espadas que decepam tudo, olhares desafiantes, raptos e violações de mulheres; Perseu corta a cabeça de Medusa, David contra Golias que o mata e decapita, a vingança sanguinária de Artemisa, Hércules parte a espinha a Centauro, Aquiles jaz morto com Ajax e este a arfar de vingança, as Sabinas sofrem às mãos dos romanos. Lá dentro da Uffizi jazem crucifixos e dor, torturas a Santa Catarina com rodas dentadas, a Santo Estêvão esfolado, a S. Sebastião espetado. E isto não acaba nunca...

Só me resta acalentar a esperança que isto tudo é só reinação para o estrangeiro ver: os budistas do Japão, os xintoístas da China, os lamas do Tibete, os hindus, os ameríndios do norte, os africanos, que pensarão deste tipo de arte degenerada?
E um tipo recua até à Piazza della Signoria e repara que calca uma estela: lê que foi ali que queimaram vivo Savonarola, o tal que durante quatro anos criou uma república cristã onde tudo era proibido, onde se seguiam as leis rígidas das escrituras. Literalmente: fogo!

quarta-feira, março 26, 2025

«A Ideia», 104/105/106

A Ideia, 104/105/106. Outono de 2024. Periodicidade anual

A IDEIA - 104 / 105 / 106
revista de cultura libertária

outono 2024

director: António Cândido Franco

editor gráfico: Luiz Pires dos Reyes

268 páginas

SUMÁRIO DE MATÉRIAS
A. Cândido Franco – Sobre o 25 de Abril – da revolução ao colapso
Beldiabo – Ideias, precisam-se
Manuel da Silva Ramos – Plongée sobre os meus anos de 74 e 75
José do Carmo Francisco – Pranto e lamentação de Joana em 22 versos
Adriano Alcântara – País de partida (trecho final)
Risoleta Pinto Pedro – Os dyanthus caryophyllus
Teresa Ferrer Passos – A luz rompeu a noite
Pedro Ferreira – Da censura ao jogo de interesses
Jorge Leandro Rosa – Simone Weil: o activismo e os trabalhos da alma
Simone Weil – Carta a Georges Bernanos
A. Cândido Franco – Sobre a carta de Simone Weil a G. Bernanos
José Carlos Costa Marques – Pomar na vertente escarpada
Amadeu Baptista – Os dias invisíveis
A IDEIA – Cem anos da rebelião surrealista
Pedro Martins – Camões: antigas e novas andanças da heresia
Nuno Júdice – No centenário do surrealismo
Paulo Jorge Brito e Abreu – Menagem-homenagem a Nuno Júdice
Grupo DeCollage – Por uma nova convocação dos cúmplices
Michaël Lowy – Um manifesto libertário
Paulo Jorge Brito e Abreu – O surrealismo no lance
Manuel Almeida e Sousa – Mandrágora
Pedro Águas – O primeiro dos primeiros poemas
Duas cartas inéditas de Pedro Águas
Penelope Rosemont – Charles Radcliff (1941-2021)
Nicolau Saião – Um voo sobre o surrealismo
José Manuel Rojo – Eugenio Castro (1959-2024)
José Estevão – O estado poético do entomólogo
A IDEIA – José Maria Ferreira de Castro (1898-1974)
Bernard Emery – Murcharam mesmo os cravos da esperança?
Ricardo António Alves – Jaime Brasil e Ferreira de Castro
Mara Rosa – Jaime Brasil (1896-1966)
Jaime Brasil – Postal a Pinto Quartin
Tomás Ibáñez – Carta a Catherine Malabou
La “Oveja negra” de Ana María Matute – Almerinda Pereira
Clandestinos do anarquismo – Sebastian Kalicha
AMGD 102 – Maria Estela Guedes
Quatro pneus furados – Henrique Manuel Bento Fialho
Contestação lúdica da extrema-direita – Henrique Garcia Pereira
Sobre o anarquismo de direita – Jerónimo Leal
Dos nazis a Elon Musk – Irénée Régnauld
Oração II – Maria Estácio Marques
Os impertinentes – Carlos Oliveira Santos


LEITURAS & NOTAS
[Alain Gras, Cassandra Querido, François Jarrigue, João Freire,
José Nuno Lacerda Fonseca, Sebastian Kalicha, Tomás Ibáñez]
BIBLIOGRAFIA
[A. Cândido Franco, João Freire, Paulo Guimarães, Mara Rosa]

[este volume da revista A IDEIA comporta um primeiro suplemento com inéditos em verso & outros achados poéticos de Nunes da Rocha & um segundo de João Freire intitulado Um Futuro Perigoso ideologias, políticas, interesses – num mundo finito & ainda um encaixe em papel IOR de quadradinhos a preto e branco da autoria de Ariana Vitorino com A VIDA DE EMMA GOLDMAN]


 

«Liberne», Júlio do Carmo Gomes

 

Livros Flauta de Luz, 2025. Ilustrações de Rita Faia
Distribuição: Antígona
Um livro mágico, este novo «Liberne» de Júlio do Carmo Gomes. O subtítulo denomina-se «Histórias dos montes baldios» e é fruto de uma longa estadia, em residência artística, em 2021, promovida pela Rural Vivo no Gerês do nosso imaginário. Não é por acaso que escrevo «imaginário», porque a maior parte de nós (que vivemos nas cidades, bastando para ter esta certeza ver a distribuição populacional do recanto) estaremos muito longe da vivência real e mítica do campo, daquela que teimosamente as gentes de lá se agarram ao ancestral, aos velhos costumes dos compartes na organização social e numa auto-produção realista, autónoma. Senti-o, pessoalmente, quando estive três dias na aldeia do Campo do Gerês, durante um festival rural. Foi evidente a minha distância tímida face ao modo como as pessoas vivem o campo, reparar na vida comunitária e várias vezes me dei a pensar como se poderia transpor esta forma de vivência social partilhada, justa, capaz, para uma cidade onde as pessoas mal se conhecem, onde vivem sozinhas, expostas ao frémito urbano e ao oblívio quando velhas, quando a única ligação social que tinham eram os laços do trabalho produtivo para o lucro de alguns. Pensei igualmente num outro livro, este de João Carlos Louçã, «Pensar a Utopia», quando permaneceu nos Pirenéus e nos deu a conhecer também as colectividades urbanas, no Porto, que promovem as trocas justas e as relações humanas nas grandes cidades. «Liberne» obriga-nos igualmente a tecer hipóteses de construir, de optar, perante o vivido pela sua leitura. Apetece fugir daqui, da cidade.

Não se pense, contudo, que a vida rural, assente em milenares hábitos comunitários, não está isenta de regras rígidas. Não é a «liberdade» completamente livre como se pensa nos chamados mitos urbanos. No decorrer da leitura de «Liberne» deparamos com uma justiça ancestral, mas óbvia nas suas regras, quer por quem aplica as leis não-escritas, bem entendido, mas também quem as recebe como multas em que o próprio «réu» também beneficia. Assim se faz a cola social baseada num saber adquirido há muito. A construção de uma base social é definida por todos, que delimitam o que é bom para a comunidade e o que é nocivo, que afastam os que não aceitam as regras e que põem em causa esse cimento de que são feitas muitas das comunidades do Gerês ainda hoje. O excelente conto «A Condena» é disso um exemplo: as regras são rígidas, até violentas, mas capazes de perdoar, de integrar, de absorver o que transvia, talvez a hipótese última de continuar o ancestral ritmo de vida rural comum a todos. O comunitarismo é explicado, em todos os contos, pelo fruir do que lemos com prazer e sem qualquer entrave de suposta matéria pseudo-pedagógica que não é para aqui chamada. 

Em «Laura» estamos perante uma magia pura. Daquela que nos lembra um Rulfo, um García Marquez. Se Júlio do Carmos Gomes escreveu e apurou a sua escrita (este livro não é o seu primeiro, já aqui falámos do seu «Urro») em quatro anos, ou seja, desde 2021, para este livro valeu cada dia. A relação de Laura, a personagem quase banida, com os lobos, esse animal mítico do campo, incompreendido pelos citadinos que abanam a cabeça de assentimento quando os caçadores abatem estes animais como neste momento está a acontecer no estado espanhol, no Xurês galego confinante com o Gerês, e com o beneplácito da UE, é um tríptico inconfundível à individualidade livre, ao mundo partilhado com os animais selvagens e um afastamento claro do cristianismo feito beato que, como sabemos, aproveitou-se de cada ritual «bárbaro» para se integrar melhor nas comunidades e assim abastardar esses mesmos rituais. «Nas terras altas do Gerês, o lobo é o animal fetichizado consagrado ao ritual de luta e sobrevivência com a natureza. É o animal heráldico e sobrenatural, a besta excluída da própria natureza. Forma atávica de o bicho-homem querer, ilusoriamente, humanizar-se e negar a sua própria natureza. A aldeia fica em alvoroço com a descoberta. À boca pequena, o povo aumenta a parada: que Laura não é Laura mas Eufémia, jovem que veio um dia fugida e que ali viveu séculos antes. (...)» (pág.55).

Em «Guardião», Júlio do Carmo Gomes apronta a sua imaginação literária para uma distopia que conseguimos rever tudo aquilo com que as populações do Gerês, alertadas, assustadas e revoltadas contra quem se movem máquinas de extracção das «terras raras», eufemismo trumpista e putinista para uma violência concertada contra o planeta; certamente os ciborgues nos anos 40 do século, que são atacados como forma de resistência das populações a quem foi negado o sossego comunitário. É aí que se destaca o papel das administrações locais, centrais e do Parque do Gerês também ele conluiado com este estado de coisas. Aqui, nestes contos foge-se ao panfletário. Trata-se de um livro de contos estruturado, pensado em cada palavra para ter o efeito desejado pelo autor. Neste «Guardião» o registo literário é de uma grande coerência. Na impossibilidade o colocarmos aqui na sua totalidade apresentamos uma parte do que entendo ser um autêntico manifesto poético do comunitarismo:

«(...) Vem pelo teu próprio pé. Não te apresses pois a sair da encruzilhada. Não te apresses a sair da encruzilhada nem do carreiro ladeado de giestas bravas e de carqueja, fincado pelos pés dos humanos, fincado pela memória de pastores e pastoras, fincado pelos pés dos teus próprios avós, fincado ao longo de séculos por gerações atrás de gerações e que a chuva, o vento e o estio ajudaram a assentar, calcando-o como a pedra antiga da mó moeu o milho que salvou o ano, sulcando o chão que pisas e onde também tu escreves o teu nome e a tua história, homens e mulheres cuja luta ao longo do tempo te abriu a clareira que agora atravessas, por onde agora caminhas e te acrescentas à vida, rendido ao canto que anuncia o crepúsculo, deslumbrado com os pirilampos que cintilam entre os silvedos e pressentindo na obscuridade o rumor que se levanta dos milhares de passos das crianças que desabriram pelos trilhos, consagrando no seu passo miúdo e irrequieto a vida sagrada da infância e fazendo fremir o chão, percorrendo a cangosta sem enxergarem as sombras do mundo (...)» (págs.92,93)

Um livro a não perder, a ler e voltar a ler, pelas expressões, pelas palavras e vocabulário aquilino, uma festa para os sentidos e para os sonhos que ainda permanecem em nós, de um dia podermos viver juntos de seguir os passos de uma república das crianças de que falava Virgílio Martinho ou Raoul Vaneigem. Atenção igualmente às excelentes ilustrações de Rita Faia.

alc

domingo, março 23, 2025

Genebra-Lausana-Gruyères em Fevereiro

 

Genève - estátua de Rousseau na ilha homónima
Os livros sobre Rousseau comprados num dos melhores alfarrabistas de Lausanne

Genève, perto da casa de Rousseau

Em Fevereiro, um assalto à vila e castelo de Gruyère com Alpes ao fundo.

A casa de Rousseau transformada em museu.

sexta-feira, março 21, 2025

«Niels Lyhne», Jens Peter Jacobsen

 

Antígona, 2024. Tradução do dinamarquês de Elisabete M. de Sousa
Posfácio de Claudio Magris, trad. de Miguel Serras Pereira
Uma descoberta de um livro notável de um escritor quase desconhecido por cá. Jens Peter Jacobsen foi um escritor dinamarquês falecido em 1885 com apenas 38 anos de idade e é considerado como uma dos melhores da sua geração, já que era lido e admirado por Rilke, Kafka, Joyce e um tal Thomas Mann, facto sublinhado e destacado pela editora. Rilke dizia que era o seu livro de cabeceira, «porque estava lá tudo». Não valerá a pena ir a estes nomes que só dificultam qualquer comentário já que as suas sombras se colocam atrás da pantalha a observar o conteúdo dos escritos. Sei que me lembrei várias vezes de «Morte em Veneza», o que me leva a pensar até que ponto o Sr. Mann não se terá inspirado neste «Niels Lyhne». Também pensei em Hardy, em Proust, em Canetti, mas que tem isso a ver? Adiante.

É difícil esquecer um livro destes. Aliás, nem isso é possível tal a força que é imprimida ao romance. Trata-se de uma vida. Uma vida de Niels Lyhne, um jovem que se torna ateu, mas não me parece que seja esse o principal tema do livro e apontado várias vezes no posfácio de Claudio Magris. Acredito mais na também referida influência do filósofo dinamarquês Kierkegaard, de Nietzsche, de Darwin e que Jacobsen traduziu a obra principal deste último para dinamarquês. A questão do ateísmo estava muito presente no final do século XIX através do positivismo, mas também é verdade que esta corrente secou bem depressa, tornando-se enfadonha e muito pouco transformadora, dando, contudo, à Ciência um papel determinante. Isto não bastava aos filósofos aqui citados e principalmente a Nietzsche que procuravam uma alternativa espiritual para a humanidade que se afastava irremediavelmente de deus. Mas Niels não é de modo algum um «super-homem» que idealizava o filósofo alemão. É antes um homem que se vê reflectido continuamente pelo passado e o pesa na sua consciência ética livre de amarras religiosas e até sociais. Neste romance a sua vida entra-nos pela nossa dentro, como uma invasão surda, mas verdadeira, uma verdade em extremo, e é isso que o faz o livro ser inesquecível. Nós somos o nosso passado e estamos sozinhos no mundo. Essa é a condição presente em nós e quando caminhamos para o futuro levamo-lo com ele, não como um fardo (isso será muito luterano ou católico, como preferirem!), mas como um conjunto de momentos felizes ou trágicos que nos moldam o carácter. 

Jacobsen era igualmente botânico e um apaixonado pela Natureza, como será óbvio imaginá-lo. A sua descrição naturalista dos cenários observados em diferentes estações é de ser guardada nos anais da literatura. A densidade psicológica que ele imprime às suas personagens é de uma grandeza absoluta, comparável a um Proust. Não me atrevo sequer a colocar aqui um trecho deste livro fabuloso. Perderia todo o seguimento, toda a vivacidade ou o vigor que nos obriga a lê-lo num único dia. 

Será um erro a tentativa de classificá-lo em qualquer movimento literário dos finais do século XIX. Não haverá qualquer possibilidade de o compartimentar no romantismo (ele nega-o no romance) ou no realismo. De facto é um livro que «tem lá tudo», repetindo o que dele disse Rilke, mas é de uma coerência total. Pode ser naturalista, até anarquista, pouco importa. Aquilo é vida e morte. Senso e não senso. Paz e ferocidade. Torno e retorno.

Uma referência à tradução directamente do dinamarquês de Elisabete M. de Sousa: não terá sido certamente fácil e as suas notas são utilíssimas para o leitor não familiarizado com a Dinamarca e a sua cultura nórdica. É uma tradução que nos dá segurança, confiável, portanto. O mesmo acontece com a tradução do posfácio de Claudio Magris, autor incontornável, por Miguel Serras Pereira e que, salvo melhor opinião, deve ser lida, mesmo, só no final da leitura contrapondo aqui e ali alguma opinião nossa.

alc

quinta-feira, março 13, 2025

«O Futuro é o Mal», Heiner Müller

 

Língua Morta, Janeiro de 2025.
Organização e Tradução de Fernando Ramalho
Foi no já longínquo 1992 que me deparei, pelo Teatro da Cornucópia e por Luís Miguel Cintra, com a dramaturgia de Heiner Müller. Em Janeiro, com «A Missão» e, logo em Abril, com «Mauser». Desde aí, não mais me separei dele, dos seus ensaios, da sua poesia e do seu teatro. Caso único que me aconteceu após ter assistido a «Mauser», no Teatro do Bairro Alto: presente com amigos, estive horas, pela noite dentro, sem conseguir dizer uma única palavra. Nem a efervescência dos bares do Bairro me conseguiram arrancar uma única formulação, mesmo rápida, sobre o que senti. Tarde demais, balbuciei qualquer coisa entre «violência», «angústia», «guerra», «aniquilação» pensando que assim, bem vistas as coisas, poderia construir uma síntese desesperada para explicar todo o complexo mundo de Müller. Este livro trouxe-me o que de melhor tem Heiner Müller e por via da Língua Morta e de Fernando Ramalho que o organizou e traduziu. Fez mais do que isso: afastou a lógica cronológica, até certo ponto limitadora da obra do autor, e desenvolveu um livro sólido perante a já citada complexidade do pensamento de Müller. Não tendo sido tarefa fácil, conseguiu-o plenamente com a tradução sustentada, e referida pelo próprio organizador, com os anteriores trabalhos de João Barrento e Adolfo Luxúria Canibal. As entrevistas a Müller são tão esclarecedoras que me pergunto por que razão não as conhecemos antes traduzidas para português. Os seus poemas, a sua biografia, os seus pensamentos e a lógica emprestada por Fernando Ramalho nos seus textos complementares são um exemplo de sobriedade e de seriedade.

«Desespero» e o seu anjo. Era esta a expressão mais evidente e mais lógica que eu poderia ter dito nessa ocasião, em 1992. Retomo a leitura: «O Anjo Desditoso», embora diferente de «O Anjo sem Sorte» da tradução de João Barrento na Relógio D'Água (editado em 1997, um ano após a morte de HM), tem a mesma cadência, nada perde em absoluto, talvez até ganhe mais solidez nas expressões apresentadas e isso acontece igualmente com «O Anjo do Desespero», de 1979, que ganha uma nova força. «O Anjo Desditoso 2», de 1990, que não consta no livro da Rd'A, é escrito após a queda do Muro de Berlim e vale a pena dar-vos a conhecer a versão de Fernando Ramalho neste «O Futuro é o Mal»:

Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento pelos ombros a estranha
Mão sobre a carne solitária
O anjo ouço-o ainda
Mas ele já não tem outro rosto a não ser
O teu que eu desconheço

Heiner Müller tem uma relação tensa com a Alemanha, tal como vimos em outros autores de língua germânica e aqui lembramo-nos dos austríacos, mais livres de escrutínio antinazi (até sabemos porquê!) que os seus congéneres alemães. Essa tensão é medida nos escritos de HM tanto para a RFA, como para a RDA em que viu os seus escritos serem proibidos ou censurados. Mas o tal «abismo» que ele vê na queda do muro e exposto no poema acima transcrito é apresentado como uma espécie de vazio que nunca poderia ser preenchido numa sociedade capitalista que ele condena com um socialismo que já não o era há muito. Deixou-se morrer, tal como a Revolução de Outubro. O fim de uma era suscita-lhe o tal anjo que ainda o sente, que ainda o ouve, mas que desconhece o rosto antes deformado por Klee ou pelo anjo da História de Benjamim.

Observem a síntese de Fernando Ramalho sobre a escrita de Heiner Müller:
«Além dos mortos, há também muitos dos seus contemporâneos a habitar os seus textos, expressa ou implicitamente. Figuras como Anna Seghers, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Ernst Jünger, Jean Braudillard, Alexander Kluge, entre muitos outros, foram, em tempos e modos diversos, participando desse diálogo incessante com a tradição. Como, de resto, também figuras do seu espaço familiar ou episódios da sua vida: a relação tensa com a memória do pai e do avô, o suicídio da segunda mulher, Inge Müller, a possibilidade de viajar com alguma frequência para fora da RDA, as dificuldades de relação com a RDA e as suas instâncias políticas e culturais, a relação feliz com a sua última mulher, Brigitte Maria Meyer, ou o cancro no final da vida.
A composição desse mosaico povoado de espectros, vozes, labirintos, memórias, sonhos, imagens de uma expressividade e violência sem concessões, implicou sempre, para Müller, um trabalho aturado sobre a linguagem que, com o passar do tempo, foi consolidando uma tonalidade elíptica e fragmentária.» (pág.132,133)

Sobre o título deste livro «O Futuro é o Mal», que alguns, seguramente, entenderão como angustiante (e o mundo não está a sê-lo?), aponta para um outro facto que não devemos, quanto a mim, colocar de lado em Müller: a sua capacidade de «ver» o futuro numa perspectiva tanto tecnológica, como de possibilidades revolucionárias, transformadoras: 

«A derrota da utopia como uma linha de fuga não é necessariamente negativa, uma vez que a utopia exige do indivíduo sacrifício e renúncia. Reduz o valor do presente a favor de uma ficção do futuro. A utopia existe sempre à custa da vida real. A questão que se põe é saber se podemos continuar a pensar o futuro como uma qualidade. Nas estruturas ainda instáveis que entretanto emergiram não é suposto que o indivíduo exista, mas apenas que funcione. Isto abre caminho para que o computador tome o poder. (...)» (pág.157). 

Repete-se: «Nas estruturas ainda instáveis que entretanto emergiram não é suposto que o indivíduo exista, mas apenas que funcione.» Isto foi afirmado numa entrevista dada a Frank M. Raddatz, em 1991!

quinta-feira, março 06, 2025

«A Presa», Irène Némirovsky

 

Cavalo de Ferro, 2021. Tradução de Luísa Benvinda Álvares
Começa-se a ler «A Presa» e pressente-se que a tensão irá aumentar porque os riscos assumidos pelas personagens são visíveis. É evidente que não conseguimos afastar a sua leitura. São vários os motivos: em primeiro lugar, o romance desenvolve-se em 1933, numa França exaurida e com ondas de choque da crise de 1929 nos EUA que, como sabemos, chega tarde ao país devido à autarcia económica e ao nacionalismo. O desemprego e a ausência de políticas sociais são uma realidade. Depois, porque estamos perante um demoliberalismo que exibe a sua própria autodestruição política antes da tomada do poder, por eleições, da efémera Frente Popular. Finalmente, porque Irène Némirovsky sabe, como ninguém, ou seja, por experiência própria, o que a casa gasta no que respeita às lutas intestinas partidárias e financeiras protagonizadas por uma burguesia que perdeu o pé, pensando que a aposta no apoio ao totalitarismo é a única saída. A época que se viveu entre as duas guerras mundiais dão-nos lições que não deveremos nunca esquecer e lembrar-nos como tudo começou, sendo que este «tudo» traduz-se em perto de 100 milhões de mortos nas duas guerras mundiais, para além de cidades arrasadas e de traumas que ainda hoje pagamos, provavelmente sem o sabermos ou errando o diagnóstico da crise social que hoje atravessa o planeta.

Dizia atrás que Irène Némirovsky sabia, por ser testemunha privilegiada, o mundo burguês que a rodeava. Infelizmente, foi isso que aconteceu e sabemo-lo lendo «A Presa». Filha de um banqueiro rico e ucraniano judeu, nasceu em 1903 tendo fugido, jovem, da Rússia soviética quando da revolução de 1917. A viagem passou pela Finlândia, atravessou a Europa e fixou-se finalmente em Paris. A família, pelo que se percebe continuou com a sua actividade banqueira, conhecendo os meandros dos favores políticos e das transacções especulativas financeiras em França que ela descreve como ninguém em «A Presa». De um modo miserável, o regime de Vichy entrega-a aos alemães que a matam em Auschwitz com apenas 39 anos. Por ser judia. 

A narrativa de «A Presa» centra-se na vida de Jean-Luc Daguerne, um pequeno ambicioso, empobrecido pela crise económica, sem emprego, mas que consegue gizar um plano de subida social através de um casamento de conveniência com uma jovem filha de um banqueiro. Todos os passos que dá são calculados ao milímetro, sem que mostre qualquer remorso nas consequências nefastas das suas escolhas para todos os que o rodeiam. Neste caso, a anomia social, a indiferença, o desprezo pelo outro ou pelo sofrimento social, sentimentos que tolhem a Europa entre as duas guerras, é totalmente representada por Jean-Luc Daguerne que cai ruidosamente em si, ainda a meio da vida, quando não consegue o que quer. Perde tudo e acaba com a sua vida, metáfora certeira do que aí vem. A densidade psicológica das personagens são, igualmente, o que dá vida a este romance. Mas interessante é, igualmente, verificar os caminhos ínvios e corruptos de uma política parlamentar já gasta, de todo previsível, cansada, intimamente ligada à banca e jogando com ela. Neste caso as pessoas nada são, tornam-se engrenagens eleitoras, um mecanismo legitimador de um regime em queda. 

«(...) Esse Langon, esse Abel Sarlat, esse Lesourd, adversário de Langon na Câmara dos Deputados, mas que jantava com ele em casa dos Sarlat e o tratava por tu, eram, contudo, eles que dispunham dos bens do regime, eram eles que controlavam as saídas para a liberdade, para o dinheiro, para o poder. Eram aquilo que nunca estivera ao alcance de Jean-Luc: boas relações. Que designação tão simples para uma coisa tão grande! Conheciam todas as plavras-chave...Para eles, nada era difícil, tudo ficava aplanado, suave, entreaberto. Agradar a Langon, a Lesourd, a Sarlat pouparia a Jean-Luc anos de espera, de vãs humilhações. Quando deixava Édith e se encontrava outra vez na rua, depois de um baile, ou no sombrio Ludo, começava a pensar naqueles homens. É certo que eles já o conheciam, mas ele entrava nas suas casas pela porta pequena, reservada à juventude...» (pág.62ee)

Jean-Luc Daguerne não cabe na definição de libertino que coloca os cânones morais em jogo como, por exemplo, um Barry Lyndon, um Sade ou uma personagem de Roger Vailland. É, antes, um Julien Sorel, de «O Vermelho e o Negro» de Stendhal, um arrivista cuja falta de escrúpulos estão em sintonia com a sua época, que não se lhe opõe, antes pelo contrário, quer pertencer-lhe. Aliás, não sei se a presa será Édith Sarlat, filha do banqueiro que casa grávida com Jean-Luc e que após o divórcio se volta para os seus, os de sempre, ou o próprio Jean-Luc que no caminho ínvio que traçou para o seu elevador social, baqueia e fere-se de morte. A presa será ele, não os que ele julga dominar.

Irène Némirovsky tem outros livros publicados em Portugal que valerá a pena conhecer: «O Caso Kurilov», «Dois», «David Golder»...

quinta-feira, fevereiro 27, 2025

«No Tempo dos Super-Heróis», Inês Lampreia

 

Editora Urutau, 2024
Inês Lampreia, foto Editora Urutau
Mais tarde, talvez não muito mais tarde, exponha por aqui alguma manifestação de interesse sobre este artigo de leitor em que falo da Inês. Agora, neste momento, não o farei porque perderia todo o impacto que este livro teve em mim. Uma série notável de contos de uma autora com uma grande maturidade estilística e literária e talvez mais conhecida fora do país do que por cá. Talvez seja melhor transcrever aqui a apresentação que o site do Festival de Literatura de Copenhague publicou sobre Inês Lampreia, obviando eventuais incorrecções ou omissões: 

«Escreve ficção e prosa poética. Ganhou o Prémio Casa do Alentejo em ficção curta em 2012. Foi publicado pelas Edições Pasárgada, Centro Mário Cláudio e em várias revistas literárias em diferentes países. Atualmente, escreve mensalmente "Crónicas Pós-Normalidade" para as notícias culturais portuguesas da Coffeepaste. Concebe e desenvolve workshops e projetos com métodos alternativos de ensino nas áreas da poesia visual, códigos de linguagem e escrita criativa, atividades que tem vindo a desenvolver nos últimos quinze anos em instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian. É também uma das escritoras do projeto Young Writers Lab, um laboratório colaborativo internacional para escritores e estudantes (Suécia).»

Para além de Professora na Escola Superior de dança (IPL) é mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE. Desde março de 2019, é diretora de comunicação da Materiais Diversos e, desde 2023, colaboradora em comunicação editorial na Culturgest. Coordenou a comunicação da Agência 25 (2019-2021), da exposição Festa. Fúria. Femina. - Obras da Coleção FLAD (2020) e do Ciclo de Cinema Outsiders (2021). Eis o resumo do que li sobre Inês Lampreia.

Poder-se-ia dizer mais do currículo de Inês Lampreia, mas o interesse principal que me move a escrever este artigo é este seu último livro «No Tempo dos Super-Heróis» que me veio ter às mãos por pura coincidência, ou acaso necessário, diria. É um livro de contos que se interligam não obrigatoriamente de acordo com uma cronologia de vida, mas de situações de um kairos sempre presente: os momentos oportunos, aquele em que tudo aconteceu, acontece, acontecerá possivelmente numa espécie de ucronia de todas as possibilidades, de todos os «ses» que a autora constrói, nem que seja nas nuvens que perpassam pelos contos, mensagem que é comunicada de geração a geração como uma linha inquebrável de compreensão das diferenças que o tempo trás com ele. Uma nuvem onde encontrar um amor como destino incontornável, imprevisível, leve ou violento, como se pode caracterizar a escrita de Inês Lampreia. Não será coincidência que um dos melhores contos que li de Inês Lampreia, ausente nesta colectânea,  tenha sido titulado de «Amor Fati», o que sempre acompanhou Nietzsche até ao seu fim.

O livro é, igualmente, um conjunto de memórias que se mostram sólidas e que o espaço e o tempo não apagam. A autora busca-as com orgulho, por vezes de uma forma austera e apaixonada para com o Alentejo, rasgada na escrita desenhada por uma revolta que socialmente aquela região sofreu para com a discricionaridade e violência das chamadas elites tão brutais, quanto ignorantes, mas que o poder ditatorial lhes mantinha o sossego de uma sublevação subalterna sempre em equação. Inês Lampreia não esquece os que orgulhosamente não obedeciam e segue registando, nas brumas de arquivos orais e que lhe permanecem vivas, como estes contos comprovam. O orgulho da terra dos antepassados está bem presente aqui, sem laivos de saudosismo ou de qualquer forma neo-realista que poderemos erradamente supor, mas de um outro espaço já em transformação nos anos 80 e 90 do século XX, o dos Super-Heróis, de uma juventude já urbanizada que não se compadece com uma vida confinada, esquecida, vista como pouco provável e que assiste, junto com os mais velhos da sua geração, a uma reconfortada viragem para a denominada normalidade social dirigida pelos possidentes. A memória que a autora nos trás aqui já não é a memória como História, mas uma memória cultural revisitada, recomposta com novos valores sociais e mentais. É isto que dá uma força incontornável ao livro, juntando-lhe uma escrita de adjectivos contidos ou contrastantes, verosímeis, como um canto pueril de um pavão ou um violento «puta de miséria!». É neste contraste, nesta passagem da suavidade, da beleza das descrições pessoais e naturais, de um amor não contido para a mais pura da revolta que se move esta colectânea notável. É impossível, no processo de leitura de «No tempo dos Super-Heróis», não nos sentirmos levados por essa brandura, sem que sintamos uns minutos depois a perturbação existente num trecho de um conto. Isto não é para todos, o que demonstra uma maturidade na escrita só conseguida por quem entende a escrita com real prazer diário.

O conto que lhe deu o prémio Casa do Alentejo em 2011, «Cinco dedos de Cortiça» abre a colectânea e nota-se de imediato o arrojo literário de Inês Lampreia devido ao dois registos literários utilizados no passado e no presente e a ausência de quem se ama no caminho sinuoso de uma solidão passada entre a casa e um centro de dia, esses lugares transformados em locais de infantilização lenta sobre a dignidade que resta nos velhos; no conto seguinte em «Encontra-me nas Nuvens», já referido com a possível subtileza atrás, reparamos numa constante que a autora impregna em vários outros contos como se fossem «remakes» de um mesmo tema: a nuvem, material etéreo, esse fumo denso, como portadora de acasos e magia única. Se temos a capacidade de nos espantar com todos os contos de «No tempo dos Super-Heróis» é, contudo, em «Retorno» que a força da escrita de Inês Lampreia se revela, ancorada numa geração que foi obrigada a emigrar, por circunstâncias políticas sombrias e que ainda não desapareceu por completo; neste caso, uma personagem, Filipa, que se divide em completar o trabalho de doutoramento numa universidade em Paris e a possibilidade de voltar. A opressão íntima da resolução de voltar para Portugal na flor da idade é bem descrita pelo absurdo de ser uma resolução «para toda a vida», sem que se note o mínimo lamento em qualquer das duas hipóteses que Filipa terá de escolher. 

Há, todavia, em «Tudo Acontece em Setembro», que não deixa de ser uma reconstituição notável dos anos 50 e da possibilidade de resistência à ditadura, uma viagem à cultura portuguesa que eu não quero deixar passar chamando este trecho, embora avisando-vos que o conto deve ser lido no seu todo:

«(...) A educação parecia um ditame da Idade Média. Embora se aprendesse muito, toda a filosofia e a história era emparedada pelo controlo do regime nacionalista e ideológico. Este saudosismo típico do português tem raízes longínquas, meu amigo, e eu observava novas gerações a perpetrarem-no. O suposto grande império colonial português, a religião e as suas tradições, o apego à terra, não pelo realismo, mas pela tradição, dava azo a que se mantivesse uma mentalidade mesquinha, pequena, conservadora e entrópica. De resto, voltámos a ver o mesmo nos anos 1990, num formato ligeiramente renovado e mais contemporâneo, já em democracia. Não lhe parece? (...)» (pág.119) 

Aqui numas pequenas linhas Inês Lampreia traduz a cultura portuguesa como um conjunto de tradições inventadas descritas por um Hobsbawm e das comunidades imaginadas expostas por Stuart Hall em todas as características das culturas nacionais e, em particular, a de uma cultura portuguesa assente num império colonial e na sua contínua autojustificação como uma das maiores mentiras que de geração em geração foram sendo construídas. Nestes pequenos diálogos de «Tudo Acontece em Setembro» Inês Lampreia faz ruir todos estes conceitos mentais que nos habituámos a ouvir anos a fio.  

Foi com um prazer inesperado que li a ironia arrasadora estampada em «Dois Dedos de Solidão» sobre o vácuo de uma vida focada no sucesso de uma curadora, sem que isso afectasse minimamente a continuidade do seu trabalho, da sua vida pessoal, ou na criação de frases sem sentido aos jornalistas que a invectivavam sobre os seus novos trabalhos. Temo, no entanto, que o facto de ter feito sobressair um ou outro conto que aqui vos trouxe apague de algum modo a qualidade global de «No Tempo dos Super-Heróis». Deve ser lido com  urgência.

Nota: Pode ser encontrado nas livrarias, embora a Livraria Snob, no meu caso, me tivesse enviado 2 dias depois, o que é obra nestas coisas! A Urutau, no seu site, também tem à venda o livro.

sábado, fevereiro 22, 2025

«Kallocaína», Karin Boye

Penguin Clássicos, 2025. Introdução de David McDuff. Tradução de Ivan Figueiras
Ainda estou por perceber qual a razão que levou a editora, depois de declarar a protecção da propriedade intelectual e dos direitos de autor, a colocar-lhe um sub-título completamente abusivo, até melhor explicação, de «Romance do século XXI»! 

Trata-se de uma distopia, de um livro inquietante, escrito em 1940, portanto antes dos conhecidos «1984», de Orwell e de «Fahrenheit 451» de Bradbury, mas após os incontornáveis «Admirável Mundo Novo», de Huxley, «Nós», de Zamiatine ou as obras futuristas de H.G.Wells, entre muitos outros que viveram o período entre as duas guerras mundiais, o que se deverá compreender facilmente com a ascensão do nazismo, do fascismo e dos processos de Moscovo liderados por Estaline que desvirtuaram a tentativa libertária da revolução russa. Todas as razões para perspectivar um futuro sombrio.

É um livro notável que nos remete para a construção de um totalitarismo que poderia ter saído da II Guerra Mundial. Mesmo com o nazi-fascismo derrotado (repete-se que «Kallocaína», foi escrito em 1940, ano de todas as vitórias alemãs sobre os aliados e o início da invasão da URSS) no final da guerra a tentativa de controlo do indivíduo pelos governos e pelos serviços secretos democráticos era uma realidade próxima e que a Guerra Fria veio acentuar e tornando-se quer numa realidade «democrática» ocidental, quer «burocrática» de leste.

A kallocaína seria um soro da verdade que quando injectado num inimigo capturado, preso, suspeito de resistência contra o Estado, ou o que quer que seja, - Kall, o inventor, usa-o na mulher para se certificar que não tem uma relação sexual com um seu colega resistente e que é condenado à morte, denunciado por ele - os fazem dizer toda a verdade contra a sua vontade e denunciar todos os seus companheiros, organismos oponentes e todos os que moral e eticamente se separam das directrizes do Estado. Uma tortura limpa, portanto; sem sangue ou violências escusadas, primitivas e cansativas. Talvez o que Elon Musk nos reserve com o seu programa Neuralink que adivinha através da computação e IA o pensamento dos simples mortais como nós que têm veleidades a, imaginem, pensar criticamente! Não que não houvesse tentativas anteriores como a administração lesiva de LSD e outras drogas químicas pela CIA, ditaduras sul-americanas e serviços secretos do leste a prisioneiros, mas a questão era e foi sempre jurídica: não se aceitavam confissões sob o efeito comprovado dessas drogas, anulando ou minorando as penas aplicadas. Agora pergunto-vos: haverá algum travão a que esse tipo de tortura se torne juridicamente aceite nos EUA de Trump e após Guantanamo? Bem me parecia que a vossa resposta não foi tão imediata quanto se pretendia, se me permitem a ousadia de tentar adivinhá-la. 

Karin Boye previu tudo isto, tal como o Estado todo-poderoso totalitário, a alienação total das massas, a credulidade em fés messiânicas, a violência da denúncia de colegas de trabalho ou de membros da família, de comportamentos considerados desviantes, o estado de guerra permanente contra inimigos imaginários ou como forma de fortalecer os Estados, como aliás se passa hoje. Bem o sabemos e não será necessário procurar muitos exemplos. «Kallocaína» também prevê a Resistência. Ela durará enquanto o Estado totalitário existir com todas as suas violências. Isso será a única certeza que Karin Boye teve e que aqueles que conhecem a luta contra a discricionaridade o sabem igualmente em todo o mundo. A autora assistiu, em Berlim e em 1938, a um comício em que o orador era Göering. A alienação e o ethos de morte era de tal ordem que, no fim, levantou o braço em saudação nazi, sabendo que correria o risco de ser linchada pela multidão se não o fizesse. Suicidou-se na Suécia em 1941, o que me leva a pensar que a maioria dos autores distópicos acabam na sua maioria assim. Ou por suicídio, ou por doenças evitáveis devido a abusos de toda a ordem. 

«(...) Nestas situações, vai ser bom ter a minha Kallocaína à disposição. Com ela, poder-se-á prever e prevenir muitas atrocidades que agora acontecem de um momento para o outro sem que as tenhamos visto chegar...
 - Desde que apanhemos as pessoas certas. O que também não é assim tão fácil. Não está a insinuar que toda a gente deva ser examinada, pois não?
 - Porque não? Porque não toda a gente? Eu sei que é um sonho futurista, mas ainda assim! Prevejo um tempo em que ninguém será colocado num posto sem primeiro ser submetido a um teste de Kallocaína, de forma tão natural como agora se é submetido aos testes psicotécnicos. Assim, serão do conhecimento público não só a competência profissional da pessoa em questão, como também o seu valor como camarada soldado. Eu imaginaria até um exame anual de Kallocaína obrigatório para cada camarada soldado...
 - Os seus planos para o futuro não são nada modestos. - Mas seria necessário um dispositivo demasiado grande.
 - Tem toda a razão, chefe, seria necessário um dispositivo demasiado grande. Exigiria uma grande entidade inteiramente nova com uma multidão de funcionários, todos eles retirados da presente organização militar e de produção. (...)» (págs.114,115, ee)

segunda-feira, fevereiro 17, 2025

«Um Circo que Passa», Patrick Modiano

 

D. Quixote, 1994. Tradução de Ana Cristina Costa
Há escritores assim, que nunca os abandonamos e temos razões de sobra para o fazer. «Um Circo que Passa», de Patrick Modiano é um livro em suspensão, daqueles em que assoma um mistério em cada página, obrigando-nos a um diálogo constante com as situações e com as personagens que as criam na esperança, por vezes desconcertante, de as adivinharmos ou aproximarmo-nos da lógica interior de dois jovens que deambulam por uma Paris dos finais dos 50, início dos 60. Ela, de 21 anos, ele um adolescente considerado ainda menor. Não se sabe por que razão, logo no início, são interrogados pela polícia, nem como, mais tarde, se deixam envolver no que parece ser um crime. É uma cidade que nada terá de parecido com a Paris de hoje, também ela invadida por turistas, por preços impraticáveis e por vigilância electrónica, mas que nos provoca uma nostalgia, talvez contraditória, onde encontrávamos quer o perigo, quer a surpresa do encontro inesperado, ou os cafés a abarrotar de gente, o cheiro a café torrado, a profusão de bebidas alcoólicas e fumo de tabaco a rodos. A deriva destes jovens é feita aleatoriamente, com o objectivo último de chegar a Roma, embora nunca saindo de Paris. E, sim, apaixonam-se em quatro dias intensos (quem nunca?), descritos por Modiano com palavras de filigrana. O fim poderá não ser o esperado pelo leitor, mas acreditem que as pessoas nesta época eram muito menos perigosas do que as de hoje, mesmo perpetrando os acostumados crimes de uma grande cidade. Pelo menos os seus habitantes não estavam cercados por uma polícia cada vez mais brutal e máfias de crime organizado em que tudo vale. Tanto uns como outros não lhes conhecemos nem a cara e nem os nomes. Acossados, para lembrar o filme de Godard, Gisèle e Jean viveram a sua vida, deambulando e seguindo os seus instintos, tendo à sua mercê um destino que ainda lhes permitem seguir como uma segunda possibilidade. 

Não pertenço e creio que nunca pertencerei a movimentos como «Mais vida, menos écrans». Por mim, trata-se de uma guerra perdida. Mas uma parte da nostalgia provocada pela leitura deste livro chegou-me através da ausência de qualquer tipo de comunicação que não fosse o telefone público e o jornal. Também o automóvel, claro. A esplanada e o café onde a conversa poderia aparecer e fluir com desconhecidos. Hoje o mundo é muito mais perigoso, porque previsível, demasiado previsível pela impossibilidade de comunicação, de saber do outro que está ao nosso lado colado a um écran, teclando, sorrindo ou chorando para um avatar, falando para si próprio na rua com uns phones pendurados. A deriva é sempre feita entre locais predestinados, contando-se os passos medidos em gps. Durante a leitura de «Um Circo que Passa» não deixei de achar estranho lembrar-me que a abertura e ignição de um automóvel só poderia ser efectuada simplesmente com uma chave de aço. Uma pessoa, termina a leitura de um livro de Patrick Modiano e sente que alguma coisa se perdeu nas interrelações humanas trocando-as pela fraude tecnológica das «comunicações digitais». 

domingo, fevereiro 16, 2025

«Baumgartner», Paul Auster

 

Asa, 2023. Tradução de Francisco Agarez
Este foi o último livro de Paul Auster, o que não quer dizer que seja uma afirmação taxativa. Com Auster nunca se sabe e tendo falecido em 2024, com um cancro, pode ter tido tempo de nos apanhar com mais surpresas tenham elas a forma que tiverem. Imaginem mesmo a existência póstuma de um nova obra. Até porque «Baumgartner» é propositadamente um livro algo incompleto como toda a nossa vida o é. E trata-se mesmo de uma existência, a dele, Paul Auster, cujo alter ego é o de Baumgartner, um professor universitário que sente a finitude física e mental, o fim próximo, desnovelando todas as memórias que possa ainda ter de uma mulher ausente por um desastre estúpido e que teima em estar sempre presente. A rotina vai salvando-o e as expectativas são ainda construídas tendo quase a certeza de que não passarão disso mesmo. Os entusiasmos têm tanto de efémeros como de inverosímeis, mas mesmo assim constrói-os como se fossem as únicas tábuas de salvação a existirem. 

Escritos sobre a finitude lembro-me logo, sem procurar muito, de Séneca, de Schopenhauer, de Saramago, de Levi, de Günter Grass e, mesmo que só de memória, ainda bem que não encontramos um denominador comum sobre a decadência e a morte. Que ela vem é algo que soa como única verdade e nas linhas escritas por Paul Auster encontramos, confortavelmente, o sublime e, por paradoxal que possa parecer, a alegria de viver. De ter estado aqui connosco, mesmo com os dissabores e contrariedades que obriga a qualquer vida. E não é só a vida despida dos outros. É a que é igualmente preenchida pela vertente social e política, aquela que vale a pena ser vivida. Não deixamos de sublinhar o novaiorquino desiludido com o movimento MAGA que vai levar Trump ao poder e que, talvez felizmente, a morte o poupou de ver. Paul Auster, chama-o de «Ubu», analisando o seu primeiro mandato. Travei a minha leitura quando ele o designou assim: gostei demasiado do Ubu de Jarry, o único rei que me obrigaria a ser monárquico, para aceitar a comparação a Trump, mas acabei por concordar porque esta veio de Paul Auster e creio mesmo que os primeiros decretos de Trump se assemelham aos ubuescos decretos do seu primeiro reinado. O maior problema é que não nos rimos. Mas afastamo-nos (ou não) do cerne deste livro notável. Fixei-me em notas de rodapé. Não tendo sido os únicos, longe disso, deixo-vos com dois trechos de Baumgartner dos que mais me impressionaram:

«Para começar, conclui que chegou o momento de se reformar. Retirar-se-á das funções docentes ativas e assumirá a posição venerável, ainda que insignificante, de professor emérito, deixando o seu lugar no departamento para sangue novo na geração seguinte. Entregar-se-á ao descanso, mas não ao exílio permanente, uma vez que lhe será dada a possibilidade de manter a ligação à universidade, com todos os privilégios de acesso à biblioteca e o direito de continuar a usar o seu endereço de email de Princeton. As suas muitas amizades com colegas de vários departamentos manter-se-ão como dantes, e continuará a assistir a conferências, debates e reuniões informais se e quando o espírito lho pedir, mas todos os aspectos penosos da sua profissão desaparecerão repentina e felizmente: acabam-se as insuportáveis reuniões de comité, as barganhas com alunos insatisfeitos com as notas, as tretas burocráticas. Por outras palavras, uma vida independente, livre - com um rendimento mensal da reforma que será praticamente igual, se não ligeiramente superior, ao do ordenado que ganhava quando estava no ativo. Um novo livro vem tomando forma dentro da sua cabeça nos últimos meses, um projeto estranho, excêntrico, que é diferente de tudo quanto experimentou até agora, um discurso sério-cómico, quase ficcional, sobre o eu em relação com os outros eus, chamo Os Mistérios do Volante, e quer dedicar-lhe o máximo de tempo possível, porque agora o tempo é essencial, e não faz ideia de quanto lhe resta. (...)» (pág.114). 

O acesso a uma biblioteca, o fim das reuniões insuportáveis, o tempo livre, o que lhe resta. E este:

«Não há nada a fazer, pensa, absolutamente nada. A perda de memória de curto prazo é uma parte inevitável do envelhecimento, e, se não for esquecermo-nos de correr o fecho das calças é percorrermos a casa à procura dos óculos com os óculos na mão, ou descermos o rés do chão para cumprir duas pequenas tarefas, ir à sala de estar buscar um livro e à cozinha encher um copo de sumo, e regressar ao primeiro andar com o livro mas sem o sumo, ou com o sumo mas sem o livro, ou sem um nem o outro porque houve alguma coisa no rés do chão que nos distraiu e voltámos para cima de mãos a abanar, esquecidos da razão que nos havia levado ao andar de baixo. (...)» (pág.184)

A isto, antes, chamava-se senilidade, agora chama-se demência. Para qualquer dos efeitos ainda estaremos todos longe, até porque quando vier não daremos por isso. 
Um livro notável, que termina de uma forma abrupta, desconcertante, inesperada. 
Este, é para ter na estante.