terça-feira, novembro 05, 2024

«Atos Humanos», Han Kang

 

D.Quixote, 2017. Tradução para o Inglês e Introdução de Deborah Smith. 
Tradução para português de Maria do Carmo Figueira
Estamos demasiado absorvidos pelo que se passará no regime monárquico da Coreia do Norte e do seu apetite termonuclear que esquecemos, muitas das vezes, que a Coreia do Sul teve um dos regimes mais sanguinários de extrema-direita que o mundo conheceu e durante dezenas de anos. Que, neste caso, Han Kang, a autora de «Atos Humanos», conheceu de perto. Só muito poucos dentre nós lembrar-se-ão das verdadeiras batalhas campais que pontificaram, nos anos 80 e início dos 90, nos campus universitários de Seul. A violência que então víamos pelas televisões (que mostravam o que queriam e somente dos correspondentes estrangeiros temporariamente lá sediados) era indescritível e a resistência não ficava inerme: lutava como podia, armada ou não, lutava sempre, respondia ferozmente às investidas da polícia de choque e dos militares. Estudantes de ambos os sexos de viseira, capacetes, óculos de mergulho contra os gases lacrimogéneos e contra os tiros reais ou de borracha. As imagens tornaram-se épicas. Os telhados das faculdades transformaram-se em castelos medievais de cujas ameias eram lançados coktail's molotov, pedras, garrafas, e cartazes enormes contra a ditadura que eram desfraldados com o peso de estudantes que se lançavam, em longos cabos, do alto dos prédios universitários. O que aconteceu no massacre de Gwangju, no sul da Coreia, a 300 km de Seul, foi outra coisa: já não eram só estudantes, como era Han Kang na altura, mas formou-se um âmago de solidariedade combativa com sindicalistas e operárias e operários, trabalhadores e funcionários que se armaram em milícias e responderam a tiro ao exército. Ainda hoje não se sabe ao certo o número de mortes que o exército fez, nem a dimensão da orgia de torturas e violações que então tiveram lugar. Foram muitos milhares. As milícias, embora armadas, hesitaram em usar as armas e foram alvo da sanha da ditadura sul-coreana que arrasaram a cidade, violando direitos humanos mais elementares. Como é apanágio da extrema-direita sempre apta a «atirar a matar».

O nome do seu primeiro ditador era Park Chung-Hee que governou a Coreia do Sul com mão-de-ferro, figura de retórica aplicada a um regime sanguinário e baseado no terror sobre a população. Nunca foi popular, mas os EUA deram-lhe a mão e conseguiu um «milagre económico» à custa, nós sabemos como!, de salários de miséria e de proibições ao nível dos direitos do trabalho, o que não impediu a continuidade de um trabalho sindical com tradições de luta que vinha desde os anos 10 e 20 do século XX. Ainda hoje os sindicatos são fortes na Coreia. Park não durou muito: o seu melhor amigo e braço-direito matou-o num golpe de estado e subiu ao poder. O seu nome: Chun Doohwan. Foi ele o responsável quer da repressão sobre os campus de Seul e do massacre vergonhoso de Gwangju que é narrado de forma magistral por Han Kang. 

Tenho para mim que quando, num futuro não muito longínquo, os historiadores estiverem à volta da avalanche informativa de factos para apurar a sua veracidade na internet e nos media, será a literatura a restituir-lhes a verdade possível. Aquela que seja mais verosímil encontrar-se-á nos livros, sejam os autores quem forem e de que lado combateram. É por isso que devemos ler este livro. Para que a memória perdure e a infâmia não caia no esquecimento. Han Kang também soube ouvir e construir os depoimentos possíveis, já que muitos dos participantes ainda se calam. 

«Descobri mais tarde que, nesse dia, tinham dado oitocentas mil munições aos soldados. Isso numa altura em que a cidade tinha quatrocentos mil habitantes. Ou seja, tinham posto à disposição deles os meios que permitiriam meter duas balas no corpo de cada pessoa. Estou firmemente convencido de que, se tivesse acontecido alguma coisa [uma resistência mais dura], os comandantes teriam dado ordem para as tropas no terreno fazerem exatamente isso. (...) Sempre que me lembro do sangue que corria pelas ruas nessa madrugada - corria, literalmente, descendo pelos degraus naquela escuridão de breu -, penso que aquelas mortes não foram apenas das pessoas que morreram naquele momento. Foram também a representação de muitas outras mortes. Muitos milhares de mortes, sangue de milhares de corações.» (pág.211)

«Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser eduzido a um inseto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade, um destino cuja inevitabilidade a História confirmou?» (pág.238)

Quem assistiu a isto tudo, numa Coreia esmagada, a ferro e fogo quando a repressão se tornava insuportável e que «Atos Humanos» nos arremete, duma forma literariamente tão linear e intimista, terá todo o direito, e talvez o dever, de nos questionar deste modo. Não sei se haverá resposta. Saramago, outro nobelizado, tinha e disse-a com clareza.

alc

terça-feira, outubro 29, 2024

«Em tudo havia Beleza», Manuel Vilas

 

Alfaguara, 2019. Tradução de Vasco Gato
Por vezes, pergunto-me o que leva um escritor a escrever um livro assim. Bem escrito quanto baste não faz necessariamente um livro interessante. Eu, eu, e só eu, mais a minha família em 400 páginas repetitivas, longas, embora com o recurso a 157 capítulos que permitem uma leitura aparentemente levezinha. Manuel Vilas não o conseguiu de todo, assim como falhou na fotografia de uma Espanha autoritária, de uma região esquecida ou de uma família supostamente disfuncional. A narrativa arrasta-se interminavelmente e conclui-se com uns «poemas» do autor mais que sofríveis. 

Fica aí um registo para que conste de um pedaço da vida de Manuel Vilas em que foi professor do ensino médio: 
«(...) Passear, olhar as nuvens, ler, estar sentado, estar consigo mesmo num grande silêncio, foi esse o proveito.
    E no dia seguinte já não madruguei. Deixei de dar aulas no ensino médio. Penso agora que aquele não era um trabalho aceitável, como em tempos julguei, mas que era só outro trabalho alienante, de uma alienação talvez menos evidente. A alienação laboral camufla-se, mas continua a estar aí, como no século XIX. Escolas, liceus, hospitais, universidade, prisões, quartéis, gigantescos edifícios de escritórios, esquadras da polícia, o Congresso dos Deputados, centros de saúde, centros comerciais, igrejas, conventos, bancos, embaixadas, sedes de organismos internacionais, redacções de jornais, cinemas, praças de touros, estádios de futebol, todos esses lugares de celebração da vida nacional, o que são? São lugares onde se cria a realidade, o sentido da colectividade, o sentido da História, a celebração do mito de que somos uma civilização. [Afinal em que é que ficamos, Manuel Vilas? A alienação são lugares onde se cria o sentido da colectividade e o sentido da História? De celebração da vida nacional?] Todos os rapazes e raparigas a quem dei aulas, que será feito deles? Alguns talvez tenham partido para sempre. [Para sempre? Não fazes o caso por menos?] E aqueles colegas de trabalho com que coincidi também irão morrendo. [Vilas, quem nunca?] Os seus rostos desvanecem-se na minha memória. Vão todos para a treva. [Sorte a deles, Manuel!] (...) Alguns colegas morreram assim que alcançaram a reforma. É um castigo do acaso. O acaso castiga os calculistas, quem calculou a sua reforma. Os liceus não guardam recordação daqueles corpos. [Isso são os cemitérios, carago!] Os estabelecimentos espanhóis do ensino médio eram edifícios sem graça, construções deficientes, com corredores anódinos, com salas frias no Inverno e tórridas logo na Primavera. Os gizes, os quadros, a sala de professores, as fotocópias, a campainha a tocar ao fim da aula, o café com os colegas, as comidinhas defeituosas, mal cozinhadas, os bares sujos.
    E tudo se decompõe. Não havia fotografias dos professores reformados nos corredores dos liceus. [Vá lá, Manuel Vilas, é isso que te incomoda verdadeiramente? A falta de um retrato num corredor?] Não havia memória, porque não havia nada para recordar. E esses colegas enlouqueciam de mediania e vulgaridade e humilhavam e desprezavam os seus alunos. Aqueles miúdos eram humilhados e ofendidos pelos professores, esses medíocres com rancor pela vida. (...)» 

E a coisa continua sem dó nem piedade. Um conselho: isto já foi suficientemente descrito, analisado, debatido até ao tutano nos anos 60 por via de um Foucault, de um Marcuse, ou de um Deleuze, por exemplo. Que é triste, é. De facto, é. Não me compete a mim dizer mais a não ser uma profunda compreensão por esta má experiência de Manuel Vilas. Se era necessário registá-la num diário público em que se transformou a sua narrativa, já é outra coisa.

alc

sexta-feira, outubro 25, 2024

Às voltas na FLUC

 

Em fins de Setembro inscrevi-me numa disciplina na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Voltei à casa, seja, embora em outro curso. Casa que, nostálgica e evidentemente, está igual como há 40 anos e cujo nome «casa» era assim designada por alguns professores quando a queriam referir com a solenidade exigida: «Esta casa não permite tal...», ou «Esta casa assim se fez...», ou, ainda, «O prestígio desta casa faz-se assim e não assado...» e para nos calar, a nós estudantes das variadas comissões de curso, mandavam um altivo «Os regulamentos desta casa não prevêem tal...». Os móveis feitos de madeira das colónias lá estão ainda firmes, hirtos e eternos, as estantes dos corredores frios estranhamente vazias o que faz com que, por exemplo, olhemos para as estantes onde pontificam cartazes anunciando «literatura belga», ou «literatura italiana» sem nenhum livro, e o bar cuja única diferença é não poder receber em dinheiro o que pedimos. Todos visualizam, comunicam, usam, pesquisam nos telemóveis.

Dizia que estava tudo igual na faculdade. Não é bem assim: a matrícula tinha um regime que me era desconhecido até Setembro que era a estranha fórmula de «unidade curricular isolada»; só o nome me propunha a exclusão decisiva, visto que me encontrava na situação de não acompanhado e isto por não me ter inscrito num curso que me daria, se o tivesse escolhido, uma ideia de consistência que não almejei. Toma e embrulha! Só a propina me dá esse sentimento simultâneo de perda e inclusão. Por outro lado, permite-me inscrever-me futuramente noutras hipóteses e disciplinas continuando, contudo, no regime ubuesco de «unidade isolada». Não é mau de todo. Siga...
 
Depois das intervenções trauteadas nas aulas, com as hipóteses levantadas, os exemplos que os professores querem ilustrar para os mais novos, são dirigidas perguntas, preferencialmente, aos três elementos «seminovos» com que somos brindados pelo jovem professor. No caso, a necessidade em pedir exemplos concretos debruçava-se sobre a cultura salazarista! Como se nós tivéssemos sido amigos de António Ferro ou privássemos com João Gaspar Simões ou do folclorista Pedro Homem de Mello. Antigos mas nem tanto, caramba! A coisa continuava: «no vosso tempo, ouvia-se a canção francesa, não?» Eu, que ouvia, repetidamente, e nos anos 80 quando contava com os meus 20 anos, Jim Morrison, os Clash, os Velvet Underground, os Joy Division e os New Order, vejo-me, de uma só penada, remetido para o Georges Brassens, Piaf, Louis Armstrong ou ainda pior. Seja: não rebati nada. A verdade é que ninguém acreditaria que um tipo de casaco e bem-aprumado, como eu me julgo, tivesse sido um bardina do pior a clamar «No Future!» e a exigir o «kaos» contra a Tatcher e o Reagan, em grego que soa melhor. Seja, outra vez: calei-me. 

O estranho veio depois. Quando entrei  na sala senti-me algo desconfortável e não sabia porquê. Não era qualquer construção ideológica em volta do idadismo ou coisa parecida. Olhava para os meus dois colegas «seminovos» e nada via de estranho, embora a sensação esquisita continuasse. Somos 61 alunos e 30% são alunos estrangeiros, mas não, não era disso que se tratava. A esses não se pergunta nada, embora houvesse alunos ingleses que dissessem não conhecer D.H.Lawrence, ou italianos que sabiam lá quem era D'Annunzio! Mas todos sabiam quem era Pessoa e era possível, até, que tivessem no frigorífico um íman com a sua cara. Continuei a olhar e a investigar o porquê da sensação estranha no anfiteatro. A coisa foi descoberta quando começou a circular a folha de presenças: todos tinham computador e teclavam! Eu e os «seminovos» éramos os únicos que, armados com a sua Bic, tiravam apontamentos frenéticos, possivelmente com a língua de fora, de certeza com o calo crescendo no dedo médio, o «pai de todos»! Ninguém tinha uma esferográfica, nem uma simples Bic, essa invenção ligada aos testes da bomba atómica que substituiu a caneta de tinta permanente que estoirava nos aviões a grande altitude sem pressão atmosférica (estão a ver como a guerra é importante para o avanço da humanidade? Sem a bomba atómica não haveria nenhumas Bic de ponta fina ou grossa!) e cuja venda no Reino Unido obrigou o seu autor a mudar o seu nome francês de Marcel Bich, para Bic, porque era chato para os ingleses pedirem uma «caneta bicha»! É evidente que a minha esferográfica seguiu o seu caminho natural até à primeira fila do anfiteatro, perante o meu protesto surdo (o jovem professor falava e isto em Coimbra ainda tem peso!). Ninguém andava armado com esse objecto agora semi-conhecido a que se chama caneta. A partir dessa aula, levo duas bic's. Uma para mim e outra para as voltas ao anfiteatro. E ainda não repararam que escrevo como antes do AO.90! Miséria das misérias...

alc

sábado, outubro 19, 2024

Camões: Vidas e Obras

Camões no sofá da psicanálise ou no seu modesto catre a ser observado por todos. Nunca saberemos o diagnóstico, porque tudo o que nos falta conhecer sobre Camões é o que o faz maior, desconfio eu. Estes 500 anos do seu suposto nascimento a 1524 têm sido férteis em nada saber de mais. Toda a biografia do vate, bate no erro ou na suposição de que foi assim e não de outra maneira. Li uma biografia de Carlos Maria Bobone e outra de Isabel Rio Novo e não posso deixar de dizer que foi com algum gosto, mais por causa do poeta do que por eles. No entanto, nada de novo na costa. Reparo na muita genealogia, concedo que muita pesquisa, aceito a honestidade intelectual, desconfio da desconfiança nos pares, tolero pouco a pancada nos antigos biógrafos, admito ainda as suas interpretações sempre subjectivas aqui e ali temperadas com um nada saudável conservadorismo. Pelicano no frontispício da 1ª edição para a esquerda ou a contrafacção da publicação pirata com o pelicano para a direita, é-me indiferente. Camões irascível, gastador, libertino, tumultuoso, eterno insatisfeito estivesse onde estivesse, algo zangado com a sua condição social de nobre empobrecido, altivo para com os mecenas que o ajudaram, iroso para os poetas contemporâneos que, tais salieris lusos, o quiseram menorizar e prejudicar, alguns deles com sucesso mesquinho; preso e exilado, feito soldado à força, ferido numa refrega habitual nos fortes de Marrocos e administrador das heranças dos mortos da Índia, apontando, já nos anos 50 do século XVI, a decadência e inconsistência do Império. Voltarei, contudo e ainda no ano dos 500, bem-entendido, a Aquilino que escreveu admiráveis páginas sobre Camões e outro sobre o seu rei, mas este é uma outra coisa, que não falaremos aqui!

Felizmente, não fui dos que sofreu muito, no liceu, a prática da subordinação das frases de «Os Lusíadas», saídas inclusive nos exames do liceu e nosso particular terror, aumentado pela ansiedade acerca do canto que iria dessa vez sair. E não sofri muito, repito, porque, à excepção de um tipo completamente doido, fascista romântico daqueles que exigiam que a capital do Império fosse para Luanda e que lhe retiraram o brevet de aviação por ter voado sob a ponte de Vila Franca!, tive professores, dizia eu, muito bons de Português que sabiam compreender que a teima na gramática e na métrica dos versos da epopeia poderia afastar-nos irremediavelmente de Camões. Creio mesmo que, inteligentemente, nos compensavam com a lírica e com a proibida «Ilha dos Amores» que nos punha com as cabeças adolescentes em colégio interno completamente engalanadas de ninfas poderosas. Mesmo o nosso professor-aviador fascista romântico, conseguia, no seu entusiasmo exagerado pela viagem de Gama e dos feitos do Império, arremeter-nos para o ambiente marítimo e do distante exótico: no meio do estrado, esbracejava, gritava os versos, revirava os olhos, soltava os cabelos cheios de brilhantina, puxava as calças para cima da barriga proeminente, enquanto o borrão de um cigarro na mão livre lhe queimava a gravata. Ah, Camões! Sempre nos parecia que o poeta nada tinha a ver com estas figuras: sobrepunha-se a eles, alevantava-se em forma de miasma e observava de soslaio com o seu olho de condescendente ciclope a turma que, sob o terror disciplinado, bebia as palavras do sub-mestre. Mas a verdade que se diga: os melhores professores que me fizeram gostar de Camões eram de esquerda, contestavam o regime e ousavam tergiversar o programa da educação nacional, o que fez toda a diferença numa época rica de mitos de um país pobre. Tenho essa certeza que ainda permanece até hoje. Então a lírica, as rimas e redondilhas não me largaram através desses professores a quem devo estas linhas: «Sôbolos rios que vão/Por Babilónia, me achei (...)»

alc

quarta-feira, outubro 16, 2024

«A Resistência», Julián Fuks

 

Companhia das Letras, Penguin Random House, 2023
Pode não constituir ainda um padrão literário, mas esta narrativa de uma nova realidade sul-americana nasce de uma pesquisa difícil e dolorosa de uma memória reconquistada pela escrita. Trata-se de uma memória que tentou ser anestesiada pelas ditaduras da América do Sul e que teimosamente emerge, lutando contra o medo, contra a morte. Esta literatura nasce de gente nascida nos anos 80 e são escritores e escritoras que teimam em fazer reviver os que morreram sob torturas, desaparecimentos, sequestros, raptos de crianças, numa espiral de violência indescritível da extrema-direita no poder. Falamos da Argentina de 1976, do Chile de 1973, do Brasil, do Uruguai, da Nicarágua de Somoza, etc, etc,. A Operação Condor nas Américas não foi uma ficção. Lembramo-nos, para além de Fuks, da chilena Alia Trabuco Zerán, em «A Subtracção» e mesmo Layla Martínez em «Caruncho» e embora este último se passe em Espanha os mortos sem morada são os mesmos. Este rastro existe, o dos desaparecidos, dos mortos ainda sem sepultura. Como nos lembra o autor, as Avós e Mães da Praça de Maio, em 30 anos, «recuperaram» 114 netos adoptados à força. Faltam cerca de 400. Este facto pesará sempre na consciência de cada um de nós, ao menos em nós, dado que a dos verdugos é um enorme vazio assassino. A literatura é viver isto, também.

Mas se, por um lado, fazem reviver os mortos ou os desaparecidos, também se questionam a si próprios e aos sobreviventes. E é aqui que nasce este padrão literário, talvez estranho para os europeus habituados à democracia parlamentar e aos bons costumes do «confronto» mais ou menos polido. Julián Fuks é mais brasileiro que argentino, se bem que os seus pais vivessem em Buenos Aires quando do golpe de Videla em 76. Ambos médicos e militantes de esquerda, tiveram de fugir para o Brasil (embora igualmente em ditadura) para sobreviver, levando consigo uma criança que vieram a adoptar e irmão mais velho de Sebastián, nome da personagem que o escritor emprestou para si próprio neste livro. Esta ferida aberta, que Fuks não se inibe de revelar, toma vários formatos: a sua relação com esse irmão, com a sua irmã biológica, com os pais, com as Mães e Avós da Praça de Maio, com a própria esquerda e com a violência, com a ditadura; e a memória que ele se força por trazer ao de cima, sem que isso não impeça um conflito que adivinhamos com os próprios pais que não concordam com o modo como o filho expõe essas mesmas feridas ainda abertas e transcritas para a ficção. A revelação fria pode ser pior que a desmemória. 

O brasileiro Julián Fuks ganhou o Prémio José Saramago em 2017, mas este não é um livro extraordinário. Por vezes, durante a sua leitura, temos a ideia que é volúvel, etéreo, solto. Pouco firme, não muito consistente com os pensamentos ou com as ideias que quer transmitir. Mas talvez tenha sido essa a opção do autor. A memória não será assim, também ela?

«Toda a vida foi infenso a esses objetos. incômoda confluência entre a ameaça efetiva e o símbolo funesto, toda a vida me quis um pacifista. Agora penso nessas armas e não entendo a euforia que sinto, a vaidade que me acomete, como se a biografia do meu pai em mim se investisse: sou o filho orgulhoso de um guerrilheiro de esquerda e isso em parte me justifica, isso redime minha própria inércia, isso me insere precariamente numa linhagem de inconformistas.»

Que esse inconformismo perpasse gerações. Com armas ou com argumentos os tempos necessitam disso.

alc

domingo, outubro 13, 2024

«Uma Nova Violência», Luhuna Carvalho

Língua Morta, 2024.
Há quem, encostado no sofá da sala, vendo a TV, consultando os jornais em telemóvel, perore continuamente contra o estado das coisas, principalmente o já muito batido «empobrecimento da classe média», repetido mil vezes por eleitos e por eleitores. Geralmente estes últimos são pessoas que, comparativamente aos que trabalham por menos que o ordenado mínimo, estão relativamente bem na vida, realmente empobrecidos, é certo, mas mantendo o status e gostos culturais que os formaram durante longos anos. Para eles a vida continua sem grandes sobressaltos na cidade grande, atafulhada de turistas, de impostos e taxas, de pedintes e de sem-abrigos.

Geralmente, os media escondem êxodos silenciosos. Não são notícia, nem garantem grandes audiências. Mas existem e são subterrâneos. Imaginem os filhos dessa classe média depauperada, farta de ser enganada por todos, ou tipos já entradotes que não aceitam mais as chantagens do Estado e das máfias organizadas a fazerem as malas para um interior cada vez mais abandonado, reconstruindo, ocupando e lançando mãos a pequenas utopias que, como nos mostra Luhuna Carvalho, apresentam uma diversidade e uma pluralidade de cores, de pensamentos ou de objectivos completamente novos, procurando a autonomia e a liberdade que nunca conseguirão a manter-se o tal estado de coisas de que falava ao princípio e que a única premissa que nos oferece é a depressão colectiva. A conquista dessa liberdade e autonomia nem sempre se compagina com a paz ou com um pacifismo serôdio. Existe muita confusão em neurónios já muito queimados pela ondas hertzianas que consomem a tal classe média: nem sempre esta gente que foge da cidade é composta por hippies coloridos que cantam continuamente o «tumbaiá» e fumam umas ganzas. O autor que escreveu este «Uma Nova Violência» mostra que não são só estes a povoarem um sistema incapaz de manter o território com a vida rural que ainda subsistia ainda há poucos anos. Essa «nova violência» é descrita assim por uma personagem do livro de Luhuna Carvalho: «A «nova violência que ele propunha [Duarte] não era uma forma de emancipação nem de resistência. essa seria a antiga violência, a violência da nova lei condenada a degenerar na velha lei. A sua violência era uma forma insurreccional de disciplina. Era a construção interna e laboriosa, mas também excessiva e ritual, de uma outra forma de ser, de uma outra forma de ser o ser. Se o capitalismo era o ser negado, a sua nova violência era o ser multiplicado.(...)» (pp.27,28)

Quem já experimentou o isolamento e a solidão de uma grande cidade, sabe que poderá existir uma aventura na construção de uma comuna, geralmente longe dos grandes ou pequenos meios, mesmo que essa aventura se torne igualmente fastidiosa e estar sujeito a contradições contínuas dos seus membros ou a sentir uma invasão não consentida na sua personalidade por via de uma vida necessariamente partilhada. O autor explica toda esse problema de um modo extremamente claro, não fugindo aos problemas internos que uma tal opção obriga. Não entra num maniqueísmo sem sentido.

«Uma Nova Violência» aponta-nos um apocalipse anunciado, principalmente nas suas páginas finais, em lugares que conhecemos demasiado bem. Geralmente ao passarmos lá algumas férias de verão aburguesadas e arrendadas, nunca pensaremos que, nas nossas costas, toda uma rede de células vivas comunais e colectivas se movem, interagem ou lutam entre si. Situações que são por vezes imaginadas, mas outras são bem reais e aconteceram na luta contra os promotores da destruição do planeta ou dos fascistas, também eles a organizarem-se em territórios delimitados. Em relação à luta destes miúdos e da violência que protagonizam nas cidades, já me referi nestas páginas, à repressão ultra violenta a que são sujeitos pela polícia e pela população, para além dos já estafados «bonzos» da esquerda que escreveram prosas completamente absurdas (por não perceberem nada do que lhes está a acontecer, nem conhecerem sequer quem age ou como se organizam nessas manifestações); são eles Daniel Oliveira, Raquel Varela, Pacheco Pereira ou Rui Tavares. À sua direita pontificaram Clara Ferreira Alves, João Miguel Tavares ou José Manuel Fernandes. Sinceramente, lendo o que escreveram contra os manifestantes, não mostraram grande diferença entre a esquerda e a direita.

Imaginem, pois, que um dia entenderemos melhor este êxodo que há anos se vem materializando paulatinamente das cidades para o interior do país feito territórios escolhidos por um movimento comunal e talvez tenhamos melhor a noção exacta que estaremos já todos à beira do apocalipse. Ou, intuirmos que já é demasiado tarde para o evitar, se queremos de facto evitá-lo.

Um livro a ler. E demasiado verosímil, o que nos incomoda sobremaneira.

alc

terça-feira, outubro 08, 2024

«Infância, Adolescência e Juventude», Lev Tolstói

 

Relógio D'Água, 2012. Tradução de Nina e Filipe Guerra
Houve quem lhe chamasse «o espelho do povo russo». Não sei se o foi, ainda o será, ou, sendo-o, subsistirá como tal pelos tempos fora; ou, sequer, existir a possibilidade de um povo se ver ao espelho, coisa impossível de acontecer, mas por vezes bem necessário e aplicado para todos os povos, não só ao russo bem entendido. Nem sei se o que seria se o povo português se visse ao espelho e de que forma e qual o material que emergiria, não fosse este exercício um rol de abstracções que me dei ao luxo de apresentar-vos. No fundo, faço-o, porque isto é uma rede social. Está explicado por si.

Seja como for, até se aceita que um escritor possa ser um espelho privilegiado de uma época ou de costumes e de mentalidades. Então hoje!, cuja informação em catadupa e a mentira programada na informação e comunicação obriga aos historiadores um labor mais que suado para atingir a objectividade factual. No futuro, permanecerá somente a literatura. A Tolstói, eu venho de tempos a tempos, para saber como se escreve. E não só: para saber como construir frases que nos levam ao pormenor, ao ambiente partilhado, ao cheiro, ao tacto, aos sentimentos, sejam eles bondosos, maldosos ou indiferentes, mesmo que dentro de uma única personagem. Porque Tosltói sabe como nós somos. Está lá tudo e quase todas as hipóteses com que se executa um acto humano; para além de um espelho de um povo ele é essencialmente um espelho de nós próprios. É isto que faz um clássico ser um clássico. A obrigação de retornarmos sempre a ele e de nos vermos nele reflectidos.

Reparem no que ele escreve sobre a sua adolescência:

«Os pensamentos abstractos formam-se em consequência de que o ser humano tem capacidade de agarrar com a consciência, em certo momento, o estado de ânimo e de o transferir para a memória. A minha inclinação para raciocínios abstractos desenvolveu a minha consciência de modo tão antinatural que muitas vezes, começando a pensar numa coisa muito simples, entrava num ciclo vicioso de análise das minhas reflexões e, em vez de pensar no problema concreto, pensava no que estava a pensar. Perguntando a mim próprio: em que estou a pensar? - respondia: penso no que penso. E agora, em que estou a pensar? Penso que penso em que estou a pensar e assim por diante. Ficava tonto...» (pág.186)

Conde, portanto aristocrata, estudante brilhante e também dissoluto, religioso, frequentador de salões da elite russa do século XIX já em decadência, no início afastado do seu povo; nos meados e fim da sua vida, como sabemos, funda uma escola na sua aldeia com novos métodos pedagógicos (que ele bem conhecia), afastando-se definitivamente da Igreja e não vê necessidade da existência de um Estado. Obviamente, o Estado esquece-o e a Igreja ortodoxa excomunga-o. Sai de casa e torna-se um nómada caminhando incessantemente, de aldeia em aldeia, até falecer na sala de espera de uma estação. A escrever, dizem.

alc

segunda-feira, setembro 30, 2024

«A Ordem do Dia», Éric Vuillard

 

D.Quixote, 2018.Tradução: João Carlos Alvim
Fixem a data e o local de uma reunião com vinte e quatro personalidades: Reichstag, Berlim, 20 de Fevereiro de 1933. Anfitrião: Hermann Göring, na ocasião, presidente do ainda Parlamento antes de ter ardido totalmente. Apontem estas empresas: Opel, Krupp, Siemens, IG Farben, Bayer, Allianz, Telefunken, Agfa, BASF e Varta. Conhecem? Éric Vuillard lembra-nos delas assim: 

«Por estes nomes, conhecemo-los. Conhecemo-los até muito bem. Estão aí no meio de nós. São os nossos carros, as nossas máquinas de lavar, os nossos produtos de limpeza, os nossos despertadores, o seguro da casa, a pilha do relógio. Estão aí, em toda a parte, sob a forma de coisas. O nosso quotidiano pertence-lhes. Cuidam de nós, vestem-nos, iluminam-nos, transportam-nos pelas estradas do mundo, embalam-nos. E os vinte e quatro homens presentes no palacete do presidente do Reichstag, nesse 20 de Fevereiro, são apenas os seus mandatários, o clero da grande indústria; os sacerdotes de Ptah. Mantêm-se aí impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular às portas do Inferno.» (pág.22)

Apontem, igualmente, os nomes destes vinte e quatro industriais e homens da banca: Wilhelm von Opel, Schacht, Gustav Krupp, Albert Vögler, Quandt, Flick, Tengelmann, Fritz Springorum, Rosterg, Brandi, Büren, Heubel, Schnitzler, Stinnes, Schulte, Ludwig von Winterfeld, Witzleben, Reuter, Diehn, Fickler, Loewenstein zu Loewenstein, Grauert, Schmitt, von Finck, Stein. Vale a pena gravá-los aqui. Todos eles tiveram as mãos sujas de sangue dos campos de concentração em trabalho escravo. Nessa reunião do Reichstag untaram as mãos de enormes somas de dinheiro para Göring e para as SS (já agora vestidas e fardadas pela Hugo Boss). Ganharam fortunas colossais com a economia de guerra erguida por Hitler. A Alemanha foi destruída. Eles não. Permanecem nas nossas vidas, ainda. Tal como nos lembra Éric Vuillard neste livro memorável a quem foi atribuído o prémio Goncourt de 2017.

«A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão-de-obra em Mauthasen. A BMW contratava em Dachau, (...), A Daimler, em Schirmerk, A IG Farben recrutava em Dora-Mittelbau, (...), em Buchenwald, em Gross-Rosen, em Sachsenhausen, em Buchenwald, em Ravensbrück, em Dachau, em Mauthausen, e explorava uma fábrica gigantesca no campo de Auschwitz: a IG Auschwitz, que, com todo o impudor, surge com esse nomeno organigrama da empresa. A Agfa recrutava em Dachau. A Schell, em Neuengamme. A Schneider, em Buchenwald. A Telefunken, em Gross-Rosen e a Siemens em Buchenwald (...) e em Auschwitz. Todos se tinham precipitado sobre essa mão-de-obra barata.» (pág.138)

Estes empresários, após 1945, nunca esconderam o seu racismo acusando os ocupantes aliados de tratarem os alemães «como negros» (palavras de Alfried Krupp, filho de Gustav Krupp) e colaborador activo da abertura do Mercado Comum «rei do carvão e do aço, o pilar da paz europeia». A desfaçatez desta gente não tinha limites: depois de organizações judaicas, em 1958, exigirem reparações monetárias aos poucos sobreviventes dos «lagger», a «negociação» ficou pelos 500 dólares a cada um!

Os factos falam por si, pouco mais há a dizer quando fechamos este livro. Resta um mal-estar perante a sua leitura que não conseguimos disfarçar. Creio que esse desconforto é aumentado pela possibilidade real de se cair novamente nesse abismo e cuja queda nunca é igual no desenrolar da História. Ela nunca se repete da mesma maneira. Como sabemos. Sabemos?

alc

quinta-feira, setembro 26, 2024

«Hotel Savoy», Joseph Roth

 

D. Quixote, 1991. Tradução de José Sousa Monteiro
Publicado em 1924, em plenos «roaring twenties», eufemismo para os gastos sumptuários dos mais ricos e dos especuladores de um mercado negro florescente após a I Guerra Mundial, Joseph Roth encontra-se em Viena nas cinzas do antigo Império Austro-Húngaro fruto de uma nova geopolítica arrancada a ferros no Tratado de Versalhes de 1919. Mas também se morre de fome nas ruas. Os emigrantes são cada vez mais a sair e a chegar num vaivém penoso, temperado muitas vezes por uma perspectiva de uma grande revolução soviética igual à de 1917 na Rússia e fracassada no soviete de Munique de 1918. Também os emigrantes são refugiados políticos de uma nova tentativa de assaltos aos céus na Mitteleuropa, lavada a sangue e a uma repressão brutal. 

Joseph Roth encontra-se nos quartos cimeiros do hotel Savoy, os das classes subalternas, visto que os ricos ocupavam os de baixo e em trânsito para os Estados Unidos. Tem, contudo, tempo para registar as suas impressões da vida socialmente absurda e decadente deste famoso hotel transformado, no final do livro, numa Bastilha ou num Palácio de Inverno a quem, com todo o gosto dos seus intervenientes, lhe é lançado um enorme incêndio, metáfora expressionista da ruptura social que Roth propõe. É aqui, no decorrer da leitura deste livro, que é impossível não vermos a paleta viva de um Otto Dix ou de um Georg Groz. 

    «Os emigrantes são meus irmãos e estão esfomeados. Mas dantes não eram irmãos, nunca foram. Nas campanhas de guerra, não, quando, levados por uma vontade incompreensível, matávamos homens que não conhecíamos, e também não nas lutas travadas na rectaguarda quando todos, obedecendo às ordens de um homem malvado, esticávamos ao mesmo tempo braços e pernas. Hoje, porém, já não estou sozinho no mundo, hoje, pertenço aos emigrantes.
    Vagueavam em grupos de cinco e seis pela cidade, pouco antes de chegarem às barracas dispersavam. Cantavam diante de quintas e de casas, vozes desafinadas e ferrugentas mas donde saíam lindas canções, às vezes nas tardes de Março um realejo rouquenho também pode ser melodioso.
    Comiam na cozinha dos pobres. As rações eram cada vez menores e a fome maior.
    Os operários grevistas, sentados, gastavam o dinheiro da greve em copos e bebiam nas salas de espera da estação, as mulheres e as crianças passavam fome.
    No bar, o industrial Neuner apalpava os seios das raparigas nuas, as senhoras respeitáveis da cidade recorriam a Xaver Zlotogor para que ele as magnetizasse tirando-lhes as dores de cabeça.»  (pág.195 de 207. ed. digital).

alc

segunda-feira, setembro 23, 2024

Folha de sala da exposição de António Barros «Escravos.Insulae_Do 25 de Abril, 50 anos depois»

 

Extracto de um artigo meu sobre o trabalho de António Barros.
Folha de sala da exposição «Escravos.Insulae_Do 25 de Abril, 50 anos depois».
Setembro de 2024

Exposição de António Barros na Galeria dos Prazeres - «Escravos.Insulae_Do 25 de Abril, 50 anos depois»

Pratiquei a deriva na Ilha da Madeira, embora de dia, embora de automóvel, embora consciente. Portanto, totalmente ao contrário da verdadeira teoria da dita deriva que se quer à noite, a pé e com eflúvios libertadores do real vivido. Fui ver, como não poderia deixar de ser e tendo a oportunidade de estar com gente funchalense boa, disponível e interessada, a exposição de António Barros «Escravos.Insulae_Do 25 de Abril, 50 anos depois». Até 28 de Outubro, podem vê-la num local extraordinário que é a freguesia dos Prazeres pertencente ao Concelho da Calheta. Sem pretender ser nenhum guia turístico (arreda!), aconselho o bife de atum e o bacalhau confeccionado nos restaurantes circundantes, para além de uma digestão necessária na casa de chá (mais que premiada) da vizinha Quinta Pedagógica dos Prazeres que, juntamente com o Mudas, Museu de Arte Contemporânea da Madeira, também foi um dos apoiantes desta exposição do António Barros. Portanto a freguesia faz jus ao nome. O mar, esse, sempre presente.

O que encontrei nesta exposição de António Barros foi uma grande coerência e uma inquietação indisfarçável. A dependência que se criou, na sociedade portuguesa, perante a sociedade de consumo, paradoxalmente exponenciada após o 25 de Abril de 1974, elevando igualmente à liberdade a economia especulativa, produziu em António Barros, uma intervenção poética denunciadora da ignorância na educação e no pensamento crítico, na política vazia de propostas, nos cérebros formatados, na incapacidade de ler e de se ser entendido. Na inexistência, igualmente, de uma linguagem libertadora. É aqui que a escravatura reaparece que aponta paulatinamente o caminho da humanidade sem que esta se aperceba da tra(u)ma que a envolve. A figura tutelar de Frantz Fanon surge então como metáfora última dessa mesma possibilidade de libertação da escravatura, mas igualmente a escrita à mão do artista/poeta e os objectos que atingem uma necessidade imperiosa de serem interpretados como liberdade que nos é ainda inerente. Se puderem não percam esta exposição e será muito pedir que ela (re)volte ao continente? Será pedir muito que ela seja debatida em espaços educativos e museológicos nos meses que ainda faltam para o término dos 50 anos do 25 de Abril ou mesmo depois do número redondo?

Deixo-vos com uma trecho de Augusta Villalobos e Isabel Santa Clara inserida na folha de sala de «Escravos.Insulae_Do 25 de Abril, 50 anos depois»: 
«Em contexto expositivo, as peças relacionam-se entre si e relacionam-se com as pessoas reais que por elas passam. Um encontro que pede para ser prolongado e aprofundado a posteriori (...). Para além da exposição como escrita, a escrita em torno da (ex)posição. Convite à leitura, desde o próprio espaço visitado. Um espaço_livro habitável. Uma arquitectura do livro_livre (AB, esGritar, o VERbo, 2024). Modos instrumentais para explorar com uma leitura alternativa, essa, geradora de descobertas múltiplas (AB, da flor, esse rosto de esGrita, FBB, 2024.). (...) Numa vascularização, por osmose discursiva, alimentando o diálogo convivial e o fórum gregário. (...) Resgatando a pessoa da condição de espectador [cobarde ou traidor - Frantz Fanon]. Numa implicAcção.»

Algumas intervenções de António Barros na Galeria dos Prazeres, na Madeira

segunda-feira, setembro 16, 2024

«Derrubar Árvores - Uma Irritação», Thomas Bernhard

 

Sistema Solar/Documenta, Abril de 2024, Tradução e Prefácio de José A. Palma Caetano.
(Não segue o AO90)
Se isto é uma simples irritação, o que se encontraria se Thomas Bernhard estivesse em fúria! Não diz mal quem quer, só quem pode. E este autor austríaco é cáustico para com a sociedade literária vienense. O livro não tem parágrafos, é uma torrente de escárnio arrasador apontada aos «artistas» austríacos principalmente, aos que, mostrando uma verve e uma prática de antigos «rebeldes» se tornam odiosos para os seus pares e mesmo para quem lhes dá subsídios que lhes permitem ter uma vida desafogada, assente em quimeras estafadas ou já ultrapassadas há muito. Balofos e inúteis. Thomas Bernhard nem consigo se mostra condescendente ao voltar a encontrar em Viena, após 30 anos em Londres, e muito menos com essa gente de que foi amiga e com quem conviveu. O suicídio de «Joana», uma amiga comum, leva-o a descrever um «jantar de artistas» vienense pretensamente em sua homenagem. Uma lembrança que leva a outras recordações e é esse o mote do livro. A obra foi escrita em 1984, nos anos 80 que o autor abomina, e foi proibida por interposição em tribunal do compositor Lampesberg que se reconheceu na figura de Auersberger. O prefaciador e tradutor José A. Palma Caetano explica bem o escândalo e ficamos atónitos como foi fácil proibir uma obra, retirando-a da circulação (em Portugal aconteceu isso com o opúsculo «O Bispo de Beja» editado pela saudosa &etc. e a acção da PJ cobriu-se, então, de ridículo) com a argumentação que alguém se revia numa personagem! Mesmo depois da justiça dar o dito por não dito e voltar a estar disponível a obra, Thomas Bernhard foi mais longe e proibiu a venda, na Áustria, não só do «Derrubar Árvores», mas da totalidade dos seus livros.

Tenho pensado bastante sobre o particular desconforto que os melhores escritores e compositores austríacos têm para com o seu país. Não foi só Thomas Bernhard a mostrá-lo. Relembro aqui a ostracização e perseguição a que foram sujeitos Ingeborg Bachmann, Karl Kraus, o compositor Georg Friederich Haas (que eu tive a sorte de ver a composição, na Casa da Música, o seu «In Vain» contra a FPO de Haider e a extrema-direita) hoje exilado nos EUA, a nobelizada e autora de «O Piano» e «Manual de Sabotagem» Elfriede Jelinek (que editei na Deriva e que em três livrarias de Viena, ninguém sabia quem era, ou teriam algum livro à venda!), Musil, Broch, Peter Handke (este último quase proscrito), Marlen Haushofer e outros, tantos outros. No caso de Thomas Bernhard e particularmente neste livro ele dá razões de sobra para que tal aconteça na democrática (mas não tanto assim) Áustria. Lembremo-nos que todos eles ressaltam o antissemitismo e nazismo larvar que ainda hoje permanece na Áustria, sem que este país tenha sequer sentido a culpabilização sobre a Alemanha ou uma desnazificação com esse nome. Além disso, não será por acaso que a Áustria foi dos primeiros países, se não mesmo o primeiro, a aliar a democracia-cristã com a extrema-direita.

«Ser artista significa na Áustria, para a maior parte, submeter-se ao Estado, seja ele qual for, e ser por ele sustentado durante toda a vida. O ser artista na Áustria é um caminho abjecto e hipócrita de oportunismo estatal, que é pavimentado de bolsas de estudo e prémios e atapetado de condecorações e que termina numa sepultura de honra no Cemitério Central.» (pág.170)

Tal como em «Betão», já aqui falado e analisado, para além da impotência das personagens de Thomas Bernhard em modificar seja o que for, visto haver sempre os empecilhos burocráticos de Estado e da sociedade baseada no dinheiro e no seu poder, para além disso, é possível retratar igualmente Portugal, os seus elementos ditos artísticos e literários, e fazê-los emergir no palco mais ou menos hipócrita, mentiroso e ignorante de que é feito o «milieu», em francês, que soa melhor. Quando escrevi, ao início, que não diz mal quem quer, mas quem pode, lembro-me, para só citar os contemporâneos, de um Luiz Pacheco e o seu «sonâmbulo chupista», uma Natália com o deputado Morgado, Cesariny com o «Virgem Negra» ou Almada a zurzir no Dantas. Com uma diferença: Thomas Bernhard é atravessado por uma melancolia e uma tristeza que nada têm a ver com os nossos. Mas isso é característico das terras alpinas, não é? Morre em 1989. Fica a sua obra extraordinária.
alc

quinta-feira, setembro 05, 2024

«A Queda dum Anjo», Camilo Castelo Branco

 

Camilo. «A Queda dum Anjo». Edição digitalizada pela BNP, 2013 (a partir da edição de 1866, seguindo o AO45)
Nada melhor (maneira de dizer) para preparar a rentrée  política (pardon my french) do Parlamento luso do que munirmo-nos atempadamente de um exemplar de «A Queda dum Anjo». Não tenho a certeza, mas creio que foi o primeiro livro que li dele, requisitado numa biblioteca da Gulbenkian. Ou tinha-o comprado na colecção Unibolso. Não larguei Camilo até hoje, tal como o Eça. Grande Luís Nogueira meu professor de Português, num colégio mal afamado numa terra atravessada pelo Nabão, que nos fez o favor de nos pôr nas mãos tal livro, que até nem era aconselhado pelo Estado Novo! Até porque acaba bem - dois divórcios realizados e felizes. 

Quem não conhece Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda? Só o nome do nosso personagem já nos arremete para a caneta viperina e arrasadora de Camilo Castelo Branco. Calisto Elói, legitimista, genealógico, católico tradicionalista e adorador do santinho Miguel, anti-malhado, realista pois claro, leitor e sabedor profundo dos clássicos gregos e romanos cai no goto das gentes nobres e tramontanas do círculo eleitoral de Travanca e é eleito para o parlamento, embora pretenda não jurar a Carta Constitucional. Deus e os padres permitem-lhe o perjúrio e aí vai ele para a capital, uma «babilónia» de costumes e valores corruptos. O seu projecto, a sua narrativa, como hoje se diria, é repor as leis dos antigos forais e ordenações vinda de antanho desde Afonso I. Nada de pouco ambicioso! A sua verve faz rir a assembleia, mas isso impele-o a dobrar a dose das suas «válvulas ejaculatórias» na sua oratória sustentada em Sólon, em Cícero e, claro, em Demóstenes. Não tardou a sumir esses conciliábulos e ideias coevas em poses liberais e esquecer a província. De morgado passa a barão. Não conto o resto.

Dizia eu que era necessário ler este livro antes da abertura do parlamento actual, entretanto transformado num chiqueiro por via de 50 deputados que sabe-se lá por que razões foram eleitos e nem eles saberão porquê ou para quê. Também eles ultramontanos e passadistas fingem esquecer que já estiveram 48 anos no poder e choram exigindo mais. Não são os únicos: entre Bugalhos, Césares, Soares (Hugos), Melos, Correias, Núncios, Matias, o ectoplasma de Calisto Elói sai-lhes pela boca fora e as tristes figuras protagonizadas por ele, na sua primeira fase, antes de conhecer o amor descrito por Camilo como sintomas de enfermidades várias: «[esses sintomas] não descobrem as pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para descriminá-los. Passa o mesmo com a ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à espinhela caída.» O homem aos 44 anos descobre o amor numa prima em quarto ou quinto grau, porque assim exigem os Barbuda. Casado, deixa Teodora a criar os patos em Travanca. Como disse antes, o romance acaba em bem para as duas partes o que é coisa deplorável para as instituições de gestão da moral alheia.

Ele há, no parlamento, hoje, enfermidades várias. Mas quanto ao burnout anunciado de quem os ouve por mais vezes que o senso obriga, ninguém fala. Alguma coisa se esgotou e nada mudou desde os anos da Regeneração do século XIX português até hoje. Haver o tal chiqueiro na eminente assembleia e que se lute contra eles, não desculpa a verruma e a quase inutilidade daquele espaço na democracia, já de si muito doente. Quer-se outra coisa.

alc

terça-feira, setembro 03, 2024

Diogo Vaz Pinto escreve sobre Joaquim Castro Caldas

 

De uma revista chamada Ler. Verão de 2024.
Devo dizer que, quase de certeza (tenho muito poucas, vá), o Joaquim Castro Caldas iria rever-se por inteiro nesta trabalho de Diogo Vaz Pinto sobre a colectânea de poemas dele e sobre a sua poesia. «Intérprete da Vontade do Pássaro» é o título da obra que foi organizada por Isaque Ferreira e Rui Spranger, amigos dele de longa data. O trabalho de Diogo Vaz Pinto tem tanto de honesto, quanto de rigoroso e devo dizer que me obrigou à compra da revista que, de todo, não leio habitualmente. Fiquemos com algumas afirmações com as quais me revejo: 

«Joaquim Castro Caldas é um poeta menor, não propriamente negligenciável, mas um poeta que dificilmente poderia infiltrar o cânone por mais que se dedicassem à sua obra os melhores esforços desses astrónomos capazes de fixar de forma genérica o nosso firmamento literário (...) Eles mesmo se mostrou consciente de que ''não fez nem faz outra coisa senão arte embrionária e terminal''.»

«Tem aquela graça da escrita desinchada, a capacidade de desarme de um literato que se desinteressou da imortalidade, preferindo estabelecer essa irmandade com o mais comum dos mortais, e explorando aquele sentimento de inaptidão irremediável para a vida.»

«Joaquim Castro Caldas lembra-nos que existe uma literatura não-oficial, que não nos faz ouvir os guizos dos condecorados.»

«Por outro lado, temos por vezes a sensação de que se trata de uma escrita que não se cumpre inteiramente, não alcança grandes cumes, fica aquém do que promete, mas vai-se implicando nesse esforço de forçar os limites, quase nos vira do avesso, e deve reconhecer-se como este ''quase'' é suficiente para desequilibrar quem respira e pressente essa força, encontrando nesta obra movimentos e levantamentos estranhos às suas necessidades de ar regulares, esse quadro que oferece um desvio face à vulgaridade do quotidiano, dando-nos um impulso.»

«Há momentos em que tudo o que parece haver nele é veneno, mas para não degradar os outros, busca saídas.»

Aviso-vos que Diogo Vaz Pinto acaba em beleza no último parágrafo do seu trabalho sobre Joaquim Castro Caldas e que será impossível de contornar a existirem estudos sobre a sua poesia. Não cometerei o erro e desrespeito de o transcrever aqui porque o artigo deve ler-se no seu todo. Tem um 'continuum' que não se pode fragmentar como eu o fiz em pequenos trechos com que me revi e que achei interessante partilhar convosco. 

O 31 de Agosto assinala os 16 anos da sua morte e ainda penso que foi há meses. Não passa esta data sem que pense nele. O Joaquim foi um cometa na Deriva e foi-o também na minha vida como editor e amigo desde os cafés de Coimbra quando esta era uma cidade noctívaga e trânsfuga, dada a escândalos e ao rasgar de normas. Falamos obviamente dos anos 70 e não da recuperação da normalidade neoliberal dos anos 80. Ele cirandava por Lisboa do teatro e os amigos de cá colocavam-no em Coimbra a vender os seus livros de café em café de bas-fonds em bas-fonds. Sempre à noite. Mas aproximámo-nos irremediavelmente, já nos 2000, nas Antas do Porto que ele amava, tal como eu. Vivia perto de mim e da escola onde eu dava aulas. A Deriva era na Batalha e por vezes deslocávamo-nos lá, mas era impossível, com o Caldas, parar muito tempo num escritório. Tínhamos de tomar ar e aí eram horas e horas nos cafés da Baixa do Porto a falar de tudo... Também era ele que mergulhava o nariz nos cabelos da minha filha quando a íamos buscar à escola primária na Costa Cabral e dizia-lhe «Cheiras a Escola! Deixa-me cheirar outra vez!»; atendia as minhas chamadas num telemóvel Nokia do século anterior todo partidinho e que era uma autêntica relíquia e ao mesmo tempo um mistério técnico por que magia conseguia funcionar. Planeámos várias apresentações do «Mágoa das Pedras», mas o seu estado de saúde já só permitiu duas: a de Lisboa e Porto. Descartou Coimbra, lembrado por mim. Ele lá soube porquê e eu também não estava muito entusiasmado. Para Lisboa, na Ler Devagar, já de Xabregas, fomos de Alfa Pendular. O Joaquim tinha sempre de mandar aquecer a cerveja sem álcool no vaporizador da máquina dos cafés. Explicado por ele, este estranho pedido era porque a cerveja fria o incomodava no esófago e garganta. Nos cafés das Antas já sabiam e não havia problemas de maior ou caras admiradas com o pedido, mas no Alfa Pendular desse dia, o empregado do bar entendeu o que não queria entender e considerar que o pedido era ou uma tentativa para o gozar, ou estavam a achincalhar o seu trabalho; aquilo acabou mal: o Joaquim que era a boa educação e bondade em pessoa, exigiu que lhe aquecessem a cerveja e que não tinha de dar mais explicações (ele não tinha dado nenhuma) e perante a evidente má criação e recusa do empregado da Refer que achava que a cerveja ia estalar e partir-se ao ser aquecida, retorquiu «que não estava para aturar bêbados!». Ora, isto chamou-me à colacção e vai daí foi uma cena do caraças em pleno comboio, lá para os lados de Pombal, que chegou a obrigar outros passageiros a entrar em campo separando as nossas mãos das golas dos respectivos casacos. Mas a coisa resolveu-se e bebemos as cervejas, eu com álcool e ele sem álcool (impossível portanto a acusação da ebriedade do Caldas). Outro grande «inconseguimento» dele era a sua relação aristocrática com o dinheiro e recusava-se a ter conta bancária. O «Mágoa das Pedras» foi-lhe pago em dinheiro vivo que ele gastava nas mercearias das Antas em hortícolas e fruta com a minha filha Ana atrás dele e a dar a sua opinião. Recebia uns morangos em troca. Gostava imenso dos seus amigos, arrisco-me a dizê-lo, que eram o seu mundo e falo obviamente do Spranger e do Isaque. Da malta vária do Pinguim (o Luís!) onde ela dizia maravilhosamente os seus poemas e de outros poetas como ele. Às segundas, quem fosse ao Pinguim era melhor levar um livro de poesia lá de casa porque o Joaquim invectivava as pessoas a poetarem «Agora és tu! O que vais ler?». O gosto pela palavra e o repentismo que o caracterizavam, quer na poesia, quer no seu contacto diário, era uma marca indelével do Joaquim Castro Caldas. Mas também a sua amargura relativamente aos académicos. Afastava-se rápido deles quando os pressentia perto. Infelizmente conheci pessoalmente, por via da Deriva, as suas doutíssimas e erradas opiniões acerca da poesia do Caldas e constituiu para mim outro mistério (dos muitos relacionados com ele) o particular ódio que alimentavam contra ele. Talvez por a sua vida ser verdadeiramente poética? Por procurá-la incessante e violentamente quando não a encontrava? Porque eram incapazes (e sabiam-no) de enveredar pela liberdade de uma vida errante e livre como a do Caldas? Saberiam eles que ele praticou a teoria da deriva por Paris, por Amesterdão, por Londres? Que foi amigo pessoal de Juliette Greco e Leo Ferré, entre outros?

Nunca mais esqueci o nosso encontro num dia qualquer de Julho de 2008, quando me preparava para ir de férias e lhe perguntei se precisava de alguma coisa. «Oh, estou a morrer. De que preciso eu?». Rimo-nos com alguma inquietação misturada. Tinha ideia que nas últimas semanas o seu estado se tinha degradado. Quando cheguei perto do final de Agosto foi o choque imenso de saber que não o via mais. Um estúpido atraso no estúdio de gravação de um cd que acompanhava um livro, o «Com quatro Pedras na Mão» sobre o Porto e do Bando dos Gambozinos de Suzana Ralha, que incluía o poema do Joaquim «Ir Indo» e musicado pelo Bando, só esteve pronto após a sua morte. Ele soube, contudo, que o íamos musicar e estava expectante, tal como o projecto do seu próximo livro que nunca teve lugar. Nunca o ouviu. Fica a sua música, o seu poema partilhado com outros como José Mário Branco, Jorge Sousa Braga, Luís Nogueira, Luísa Ducla Soares, Matilde Rosa Araújo, Rui Pereira, João Pedro Mésseder e Filipa Leal como uma lembrança que atravessará os tempos, certamente.

alc

sexta-feira, agosto 30, 2024

«Caminhar - Uma filosofia», Frédéric Gros

 

Antígona, 2023. Tradução de Inês Fraga. Não segue o AO90
De Frédéric Gros conheço o seu livro «Desobedecer» editado igualmente pela Antígona. Livro interessante de seguir, não se pense que é de auto-ajuda, o que não quer dizer que não vos ajude. De jeito enciclopédico, leva-nos a viajar pela ideia filosófica da caminhada por alguns dos seus protagonistas mais conhecidos: Thoreau, Nietzsche, Nerval, Kant (este chato menos caminhante que os outros), Rimbaud, Rousseau, Kierkegaard, Hölderlin e até Gandhi. Outras pequenas referências são-nos dadas conforme a narrativa e a procura de Gros, como, por exemplo, as errâncias dos primeiros monges cristãos proibidos pela igreja sedentária ou os peregrinos de todos os matizes que encontram a «revelação» caminhando incessantemente.

E, por falar em «caminhar incessantemente» desconhecia, de todo, a doença dos «caminhantes loucos» capítulo do livro que, se o adquirirem, não devem deixar de ler. Nerval e Rousseau encontram-se, escreve Gros e recorrendo à opinião de alguns «médicos pouco inspirados», entre os chamados «dromomaníacos», um síndrome de doença mental que obriga o paciente a caminhadas repetitivas e intensivas. O mentor desta teoria foi Achille Foville, sócio da Sociedade Médico-Psicológica, e que, em 1875, descreveu como patológicos «o gosto por viagens intempestivas e a paixão migratória»! Pois: fosse dizer isso a uma família irlandesa com fome e que emigrava para os EUA ou Austrália que tinha uma patologia dromomaníaca e que mostrava uma «impossibilidade de permanecer em casa»!! Gostaria muito de ver a reacção dessa família para com o senhor Achille. No entanto, teve a boa educação (já que senso demonstrou não ter) de distinguir dos chamados dromomaníacos os «...imbecis que não conseguem estar parados e deambulam tolamente; os dementes que materializam o seu delírio em errâncias sem destino; os dipsomaníacos (bêbados inveterados) ou eratómanos que saem de casa para se precipitar na lama das cidades e aí satisfazer os seus vícios (sic!).» (pág.77) Haja paciência para ler estas coisas sem ser nos programas eleitorais dos «iliberais»!

Gostamos de ler «Caminhar», embora o autor nos avise que esta actividade não é um desporto. E ainda bem que não o é. Gostamos nós de caminhar na natureza em silêncio, comunicando com as pedras e as árvores ou os pássaros, ou correr numa passadeira como um hamster amestrado num ginásio a cheirar a suor? É escolher... por mim, que já usei as duas experiências, fixei-me na primeira proposta. Contudo, ao finalizar a leitura deste livro, vi-me como um amador das caminhadas: comparar-me com as pernas de Nietzsche que andava os seus 50 km por dia nas margens do lago Léman (onde já caminhei, por acaso) é impossível, tal como com Rousseau que caminhou incessantemente quando era miúdo de 20 anos e no seu Outono da vida; nos entrementes, frequentava os salões sociais onde se fartou. Hölderlin foi outro que caminhou de Estrasburgo até Bordéus, fazendo com que os críticos e amigos assentassem que houve um poeta antes da viagem e outros, após-Bordéus! Ou seja, o enorme poeta procurou claramente a ruptura que o levou a ser guardado numa torre e tendo, como leal amigo, um marceneiro, seu tutor. Já Rimbaud conhecemos bem de que é feito: a partir dos 15 anos nunca teve sossego na sua errância constante. Por não ter dinheiro, fugia a pé pelas estradas e assim permaneceu toda a sua vida poética e de comerciante de armas. Sabemos o fim, não necessariamente ligado às suas longas caminhadas. Já não se poderá afirmar o mesmo com Robert Walser, igualmente um grande caminhante, arredado estranhamente ausente deste estudo de Gros, que faleceu num trilho de montanha que contornava o Hospital psiquiátrico de Herisau, em 1956. Sinto-me, pois, no direito mais que legítimo e, aliás, muito pouco arrogante de me identificar com as caminhadas diárias e circulares de Thoreau que não saía da floresta Concord, aproveitando os dias que formavam o conjunto das estações do ano as mudanças, as transformações, que a natureza tinha o condão de nos apresentar. Monótono? Pois sim: «A caminhada é melancólica, monótona. É por isso que nunca se revela enfadonha. Devemos opor a monotonia ao tédio. O tédio é a ausência de projectos de perspectivas. Giramos em volta de nós mesmos. (...) A caminhada nunca é entediante. Apenas monótona. Quando caminhamos, vamos a algum lado, estamos em movimento, o passo é uniforme. Há demasiada regularidade, demasiado ritmo para que a caminhada provoque tédio.» (pág.139)

As caminhadas nas cidades também não são esquecidas, mas nota-se um certo desprezo do autor perante as fugas e caminhadas urbanas. Só o espírito de 'flâneur', quer de Baudelaire e Walter Benjamim, quer da Teoria da Deriva de Debord e dos situacionistas (Groz dedica a este último um único pequeno parágrafo) é tido como viável, tal como nos diz neste trecho que reproduzo:
 
«Subversão da especulação. O 'flâneur' resiste ao produtivismo. É perfeitamente inútil, mas não é passivo. Não faz nada, mas persegue obstinadamente tudo, captando instantaneamente choques, encontros, imagens. Sem o 'flâneur', quem poderia atestar o que acontece nos cruzamentos? Cada um de nós produz às cegas a sua série de fenómenos. O 'flâneur' apreende as centelhas, as fricções, num piscar de olhos.
Subversão do consumo. A multidão perde-se no seu devir-mercadoria. Arremessado de um lado para o outro, o indivíduo torna-se presa dos movimentos. A multidão consome, as avenidas devoram. Os letreiros, as montras existem para fazer circular mais depressa as mercadorias. O 'flâneur' não consome nem é consumido. Respiga, rouba. É verdade que nunca recebe, ao contrário do caminhante das planícies e das montanhas, a paisagem como oferenda pelos seus esforços. Mas capta, apanha instantaneamente encontros improváveis, momentos furtivos, coincidências fugidias. Deita a mão a vinhetas e faz fluir em si a chuva fina das imagens roubadas.» (pág.220)

Talvez por isso, o registo (e roubo assumido) de imagens pela fotografia e pelo desenho urbano tornou-se, hoje em dia, um modo de subversão impossível de imaginar em meados do século XX.

alc

quarta-feira, agosto 28, 2024

«O Passo da Floresta», de Ernst Jünger

 

BCF Editores, 2021. Tradução de Maria Filomena Molder. Capa de Ana Jotta. Não segue o AO90
Uma edição de 1995 da Cotovia, traduzida por Maria Filomena Molder, já tinha sido colocada nas livrarias. Pelo que entendi, esta é uma excelente nova versão. 
Não conheço suficientemente a obra de Ernst Jünger ao ponto de me alongar muito em qualquer tentativa de interpretar a sua filosofia como um todo. Fico-me por este livro, lembrando-me vagamente que desde há uns anos ter lido apressadamente «Eumeswil», editado pela Ulisseia em 1977 e «Chasses Subtiles», da Christian Bourgois, editado igualmente nesse mesmo ano. Não li ainda «Tempestades de Aço» sobre a sua experiência nas guerras. Ainda os mantenho, apesar das vicissitudes várias da vida dos livros que teimam em acompanhar-me. Sinceramente, nem sei explicar bem por que razão este autor vive comigo há tanto tempo, sendo ele um conservador assumido. Mas não é só por isso que o tenho e o leio de quando em vez, visto que é necessário conhecer o que pensam os conservadores de várias matizes e qual a acção concreta que os faz mover. Vamos a factos: o que me afasta dele é o militarismo e o nacionalismo latente nos seus escritos, mesmo que se esforce em recusar qualquer laivo racista. Sendo difícil esta posição assumida, não é de todo impossível de a concretizar. O que me leva a lê-lo é a sua iconoclastia: amante da natureza, de Nietzsche (do verdadeiro, do que entende que o Super-Homem é o escravizado e que a sua luta constante é o dia em que se libertará), do seu ateísmo e niilismo e, igualmente o facto de duvidar tanto da Humanidade, como da democracia burguesa que, a ser concretizada totalmente, levará inevitavelmente à ditadura baseada, contudo, em eleições. Sendo este livro escrito em 1951, não nos será muito difícil, hoje em dia, concordar com ele; infelizmente, temos conhecimento real do crescimento contínuo do aparecimento de democracias «iliberais» (eufemismo para o fascismo) pelo mundo fora. Afirma neste «O Passo da Floresta» que a um ditador não lhe convém um resultado eleitoral de 100% porque lhe retiraria toda e qualquer hipótese numa existência de oposição; assim, será avisado que se mantenha 2% de votos ou vontades que se oporão à sua governança, nem que sejam teleguiadas pelos estados. 98% seria o ideal, portanto! Essa percentagem residual manteria a possibilidade infinita de um exercício totalitário de sucesso. O que não impediria, simultaneamente, de um «desterrado», uma das «figuras» tratadas posteriormente por Jünger tal como a de «trabalhador», um opositor consciente, em accionar todo um tipo de momentos políticos que levassem ao desgaste do poder totalitário, votasse ou não, participasse ou não nas eleições «democráticas». Não é por acaso que hoje vemos a banalização do acto democrático por Estados que ou não seguem as suas próprias constituições e abastardam os resultados eleitorais ou cometem fraudes cada vez mais frequentes legitimadas por uma nova necessidade de um estado de excepção. Um Carl Schmitt assinaria por baixo, tal como este novo Leviatã protagonizado por Jünger. Exemplos não faltam nos dias que nos passam pelos nossos olhos: Trump, com o assalto ao Capitólio, Macron que não reconhece os ganhos da esquerda nas urnas, Putin, Maduro... De qualquer maneira, Ernst Jünger avisa-nos que o passo da floresta pode ser tanto a liberdade-refúgio para nós próprios como para o outro reconhecível e essencial para uma sociedade livre. Mas, para além desse ethos social, pode ser igualmente o nosso retiro antes da morte, um sentimento de alguma coisa já feita, realizada. Uma necessidade de partir, sem medo de tomar a liberdade em mãos. É um livro vagamente orientalista, mas com uma grande ânsia de liberdade que a Alemanha pouco lhe deu e que a Europa e o Ocidente não cumpriram de todo, restando somente a rebelião como última arma. A única racional, já que o Iluminismo falhou em todo o século XX que ele conheceu bem. Infelizmente, bem demais.

Ernst Jünger morre aos 102 anos, em 1998. Lutou na I Guerra Mundial (antes dela já lutava em África pela Legião Estrangeira, com apenas 15 anos, tendo sido resgatado pelo pai!) e foi ferido sete vezes, tendo recebido os acostumados louvores chauvinistas alemães. Pertenceu a unidades de choque que, pela calada da noite, atacavam as trincheiras inimigas e degolavam as sentinelas com as baionetas. O que não o impediu de amar os insectos, os animais e as plantas ao ser um entomologista, zoólogo e botânico de renome. Perante isto, só me resta desejar que nenhum filósofo tenha responsabilidades governamentais ou desenhe o destino de um país e de um povo! Era, igualmente, um pesquisador sensorial e um opiómano, embriagando-se e experimentando todas as drogas que lhe vinham às mãos, escrevendo num estado de êxtase, o que lhe vinha à cabeça. Muitos dos seus melhores livros estão aí para o provar. Militar exemplar para os cânones habituais das casernas, claro que nos anos 20 e 30, Hitler e os seus meninos de coro andaram-lhe a arrastar a asa, mas Jünger renegou sempre o nazismo, talvez pela sua origem aristocrata, e a partir de 1943 chega a ser vigiado pela Gestapo. O exército, que ele tanto amou, mata-lhe um filho em Itália, obrigando-o a uma missão suicida num batalhão disciplinar e, claramente, por motivos políticos. Deixo-vos com um trecho deste «O Passo da Floresta» sobre a liberdade:

«O verdadeiro problema reside, antes, no facto de uma grande maioria 'não' querer a liberdade, no facto de até ter medo dela. É preciso 'ser' livre, para chegar a ser livre, porque liberdade é existência - é, sobretudo, o sentimento harmónico da existência e o prazer, sentido como destino, em a realizar. É, então, que o ser humano é livre, e o mundo cheio de coacção e de meios de coacção tem de servir, daqui em diante, para tornar visível a liberdade em todo o seu esplendor, do mesmo modo que as massas da pedra primitiva, pela pressão que exercem, fazem germinar cristais.
A nova liberdade é velha, é liberdade absoluta na roupagem da época; pois, conduzir uma vez mais, apesar de todas as astúcias do espírito do tempo, ao triunfo da liberdade: eis o sentido do mundo histórico.» (pág.119)

«O Passo da Floresta» deve ler-se com os olhos de hoje; não perderão nada porque a sua actualidade é impossível de esconder. Pelo medo que as grandes massas mostram ter por essa liberdade posta em causa cada vez mais por pequenos führers que se vão apresentando aqui e ali nas ruínas de uma sociedade verdadeiramente doente em que a guerra permanente, a anomia, a violência destrutiva e a ignorância surgem como um vórtice que nos arrasta para um fim anunciado. Ler Jünger talvez nos aplaque a vontade de mergulhar nesse vórtice. 

alc