De uma revista chamada Ler. Verão de 2024.
Devo dizer que, quase de certeza (tenho muito poucas, vá), o Joaquim Castro Caldas iria rever-se por inteiro nesta trabalho de Diogo Vaz Pinto sobre a colectânea de poemas dele e sobre a sua poesia. «Intérprete da Vontade do Pássaro» é o título da obra que foi organizada por Isaque Ferreira e Rui Spranger, amigos dele de longa data. O trabalho de Diogo Vaz Pinto tem tanto de honesto, quanto de rigoroso e devo dizer que me obrigou à compra da revista que, de todo, não leio habitualmente. Fiquemos com algumas afirmações com as quais me revejo:
«Joaquim Castro Caldas é um poeta menor, não propriamente negligenciável, mas um poeta que dificilmente poderia infiltrar o cânone por mais que se dedicassem à sua obra os melhores esforços desses astrónomos capazes de fixar de forma genérica o nosso firmamento literário (...) Eles mesmo se mostrou consciente de que ''não fez nem faz outra coisa senão arte embrionária e terminal''.»
«Tem aquela graça da escrita desinchada, a capacidade de desarme de um literato que se desinteressou da imortalidade, preferindo estabelecer essa irmandade com o mais comum dos mortais, e explorando aquele sentimento de inaptidão irremediável para a vida.»
«Joaquim Castro Caldas lembra-nos que existe uma literatura não-oficial, que não nos faz ouvir os guizos dos condecorados.»
«Por outro lado, temos por vezes a sensação de que se trata de uma escrita que não se cumpre inteiramente, não alcança grandes cumes, fica aquém do que promete, mas vai-se implicando nesse esforço de forçar os limites, quase nos vira do avesso, e deve reconhecer-se como este ''quase'' é suficiente para desequilibrar quem respira e pressente essa força, encontrando nesta obra movimentos e levantamentos estranhos às suas necessidades de ar regulares, esse quadro que oferece um desvio face à vulgaridade do quotidiano, dando-nos um impulso.»
«Há momentos em que tudo o que parece haver nele é veneno, mas para não degradar os outros, busca saídas.»
Aviso-vos que Diogo Vaz Pinto acaba em beleza no último parágrafo do seu trabalho sobre Joaquim Castro Caldas e que será impossível de contornar a existirem estudos sobre a sua poesia. Não cometerei o erro e desrespeito de o transcrever aqui porque o artigo deve ler-se no seu todo. Tem um 'continuum' que não se pode fragmentar como eu o fiz em pequenos trechos com que me revi e que achei interessante partilhar convosco.
O 31 de Agosto assinala os 16 anos da sua morte e ainda penso que foi há meses. Não passa esta data sem que pense nele. O Joaquim foi um cometa na Deriva e foi-o também na minha vida como editor e amigo desde os cafés de Coimbra quando esta era uma cidade noctívaga e trânsfuga, dada a escândalos e ao rasgar de normas. Falamos obviamente dos anos 70 e não da recuperação da normalidade neoliberal dos anos 80. Ele cirandava por Lisboa do teatro e os amigos de cá colocavam-no em Coimbra a vender os seus livros de café em café de bas-fonds em bas-fonds. Sempre à noite. Mas aproximámo-nos irremediavelmente, já nos 2000, nas Antas do Porto que ele amava, tal como eu. Vivia perto de mim e da escola onde eu dava aulas. A Deriva era na Batalha e por vezes deslocávamo-nos lá, mas era impossível, com o Caldas, parar muito tempo num escritório. Tínhamos de tomar ar e aí eram horas e horas nos cafés da Baixa do Porto a falar de tudo... Também era ele que mergulhava o nariz nos cabelos da minha filha quando a íamos buscar à escola primária na Costa Cabral e dizia-lhe «Cheiras a Escola! Deixa-me cheirar outra vez!»; atendia as minhas chamadas num telemóvel Nokia do século anterior todo partidinho e que era uma autêntica relíquia e ao mesmo tempo um mistério técnico por que magia conseguia funcionar. Planeámos várias apresentações do «Mágoa das Pedras», mas o seu estado de saúde já só permitiu duas: a de Lisboa e Porto. Descartou Coimbra, lembrado por mim. Ele lá soube porquê e eu também não estava muito entusiasmado. Para Lisboa, na Ler Devagar, já de Xabregas, fomos de Alfa Pendular. O Joaquim tinha sempre de mandar aquecer a cerveja sem álcool no vaporizador da máquina dos cafés. Explicado por ele, este estranho pedido era porque a cerveja fria o incomodava no esófago e garganta. Nos cafés das Antas já sabiam e não havia problemas de maior ou caras admiradas com o pedido, mas no Alfa Pendular desse dia, o empregado do bar entendeu o que não queria entender e considerar que o pedido era ou uma tentativa para o gozar, ou estavam a achincalhar o seu trabalho; aquilo acabou mal: o Joaquim que era a boa educação e bondade em pessoa, exigiu que lhe aquecessem a cerveja e que não tinha de dar mais explicações (ele não tinha dado nenhuma) e perante a evidente má criação e recusa do empregado da Refer que achava que a cerveja ia estalar e partir-se ao ser aquecida, retorquiu «que não estava para aturar bêbados!». Ora, isto chamou-me à colacção e vai daí foi uma cena do caraças em pleno comboio, lá para os lados de Pombal, que chegou a obrigar outros passageiros a entrar em campo separando as nossas mãos das golas dos respectivos casacos. Mas a coisa resolveu-se e bebemos as cervejas, eu com álcool e ele sem álcool (impossível portanto a acusação da ebriedade do Caldas). Outro grande «inconseguimento» dele era a sua relação aristocrática com o dinheiro e recusava-se a ter conta bancária. O «Mágoa das Pedras» foi-lhe pago em dinheiro vivo que ele gastava nas mercearias das Antas em hortícolas e fruta com a minha filha Ana atrás dele e a dar a sua opinião. Recebia uns morangos em troca. Gostava imenso dos seus amigos, arrisco-me a dizê-lo, que eram o seu mundo e falo obviamente do Spranger e do Isaque. Da malta vária do Pinguim (o Luís!) onde ela dizia maravilhosamente os seus poemas e de outros poetas como ele. Às segundas, quem fosse ao Pinguim era melhor levar um livro de poesia lá de casa porque o Joaquim invectivava as pessoas a poetarem «Agora és tu! O que vais ler?». O gosto pela palavra e o repentismo que o caracterizavam, quer na poesia, quer no seu contacto diário, era uma marca indelével do Joaquim Castro Caldas. Mas também a sua amargura relativamente aos académicos. Afastava-se rápido deles quando os pressentia perto. Infelizmente conheci pessoalmente, por via da Deriva, as suas doutíssimas e erradas opiniões acerca da poesia do Caldas e constituiu para mim outro mistério (dos muitos relacionados com ele) o particular ódio que alimentavam contra ele. Talvez por a sua vida ser verdadeiramente poética? Por procurá-la incessante e violentamente quando não a encontrava? Porque eram incapazes (e sabiam-no) de enveredar pela liberdade de uma vida errante e livre como a do Caldas? Saberiam eles que ele praticou a teoria da deriva por Paris, por Amesterdão, por Londres? Que foi amigo pessoal de Juliette Greco e Leo Ferré, entre outros?
Nunca mais esqueci o nosso encontro num dia qualquer de Julho de 2008, quando me preparava para ir de férias e lhe perguntei se precisava de alguma coisa. «Oh, estou a morrer. De que preciso eu?». Rimo-nos com alguma inquietação misturada. Tinha ideia que nas últimas semanas o seu estado se tinha degradado. Quando cheguei perto do final de Agosto foi o choque imenso de saber que não o via mais. Um estúpido atraso no estúdio de gravação de um cd que acompanhava um livro, o «Com quatro Pedras na Mão» sobre o Porto e do Bando dos Gambozinos de Suzana Ralha, que incluía o poema do Joaquim «Ir Indo» e musicado pelo Bando, só esteve pronto após a sua morte. Ele soube, contudo, que o íamos musicar e estava expectante, tal como o projecto do seu próximo livro que nunca teve lugar. Nunca o ouviu. Fica a sua música, o seu poema partilhado com outros como José Mário Branco, Jorge Sousa Braga, Luís Nogueira, Luísa Ducla Soares, Matilde Rosa Araújo, Rui Pereira, João Pedro Mésseder e Filipa Leal como uma lembrança que atravessará os tempos, certamente.
alc