terça-feira, outubro 24, 2023

«Le Silence de la mer», Vercors

 

Albin Michel, Le Livre de Poche, 1951
Pacifista em 1914, Jean Bruller deixa de ser somente ilustrador em 1940 e torna-se escritor na resistência francesa contra os nazis com o nome de Vercors. É evidente que ser pacifista perante Hitler não teria sentido e ele compreende-o rapidamente não hesitando em juntar-se activamente à luta contra os alemães, abandonando as suas anteriores convicções. Por isso mesmo, este livro de contos editado pela igualmente clandestina Éditions de Minuit tem um cunho político muito particular.

Falo por mim, mas não achei particularmente entusiasmante a leitura dos contos que compõem o livro, mas o conto homónimo que lhe dá o título, Le Silence de la mer é um caso diferente. Quando foi publicado nos finais de 1941 houve alguns equívocos relacionados com a sua publicação, oriundos da própria resistência, que se perguntava sobre a identidade do autor, isto é, de Vercors que não poderia usar o seu nome, obviamente, até porque o seu trabalho político era vigiado de perto pela Gestapo. A trama passa-se numa casa de uma pequena vila onde vive um francês e a sua sobrinha e que é requisitada por um oficial alemão. Militar esse que reconhece a «superioridade» da cultura francesa e que, sendo compositor na vida civil, a conhece bem. Tenta, então, estabelecer um diálogo com as duas personagens sobre a possibilidade real de juntar as duas culturas, a alemã e a francesa, como um projecto plausível que o leva, embora levemente, a criticar toda e qualquer violência para com os ocupados. Está implícita uma descolagem ao plano paranóico dos nazis por parte do oficial alemão. A resposta que tem, contudo, é um silêncio determinado pelo tio e sobrinha franceses. Quando o oficial parte é para a frente russa. Morte certa, portanto. Assim acaba o conto.

A questão que se levanta é universal, ou seja, o de saber qual deverá ser a intensidade da resistência perante um ocupante que utiliza a violência como razão última para a guerra e genocídio de povos. E essa universalidade é colocada, infelizmente e ainda hoje, no planeta em convulsão. Vercors conheceu essa violência de bem perto, visto que viu muitos companheiros serem fuzilados como Politzer ou Decour e outros que lutaram nos maquis abandonando a clandestinidade das cidades como Pierre de Lescure, seu amigo e que foi substituído na resistência literária e panfletária por Paul Éluard nas Éditions de Minuit. O que sobressai nas críticas que então foram arremessadas a Vercors, em plena II guerra, foi exactamente o factor «silêncio». Segundo alguns, quem poderia defender o silêncio como arma contra o ocupante só poderia ser um colaboracionista! Ora, se analisarmos bem o papel da resistência francesa sabemos que muitos dos escritores resistentes só o foram de facto a partir de finais de 1943 e em 1944, quando a derrota alemã já era inevitável. Antes, muitos deles mantiveram-se, ironicamente, em silêncio que a não existir acção era quase confundida com neutralidade, essa sim criminosa! É isto que afirma Yves Beigbeder no posfácio de Silence de la mer que ataca um deles, Arthur Koestler, que no cómodo exílio de Londres tem a ousadia de «demonstrar» o colaboracionismo do conto de Vercors defendendo que o silêncio não seria a táctica a utilizar mesmo que o opositor fosse um oficial alemão antinazi. 

Não deixa de ser impressionante, ao ler o conto de Vercors, como se pode inverter toda uma interpretação (explicada nesta edição por um prefácio do autor bem esclarecedor!) e a mensagem constante em Silence de la mer. Mas isso pouco importa, visto que os tempos eram outros, bem difíceis onde a vida e a morte caminhavam juntas não se sabendo se se estaria vivo no dia seguinte. O que importa é que estamos perante um conto notável, seguido de outro, Le Songe, com laivos claramente surrealistas, embora tenhamos por certo que já se denunciava o horror dos campos de concentração e das marchas da morte no final da guerra. Afinal, sabia-se.

Existe uma publicação em português na Editorial Presença datado de 1986 e reeditado este ano. O site da editora não informa da tradução. Também existe um filme homónimo de Jean-Pierre Melville, datado de 1949.