Mais uma derrota do povo aborígene australiano hoje reduzido a 3,8% da população com perto de um milhão de pessoas, muitas delas vivendo em condições de pobreza de que não conseguem sair devido às políticas de discriminação social e de racismo oficiais. Ao contrário da Nova Zelândia e do Canadá que já reconhecem na Constituição os direitos dos povos autóctones (tarde piaram!), a aposta do primeiro-ministro Albanese na Austrália era criar um conselho consultivo dos Primeiros Povos (isso da deliberação ainda não é para os «primitivos»!) denominado A Voz. Em referendo os australianos foram a votos e em meados de Outubro de 2023 disseram «não». Nem deliberativo ou consultivo - nada! Torna-se evidente que um conselho daquele tipo nada mudaria, mas era um primeiro passo para a necessária, quanto desejada, forma de verem o povo aborígene como mereceria ser visto: portador de uma cultura ancestral, ligada fortemente à Natureza, que nos daria lições de vida a uma civilização no seu estertor - a nossa. Como disse um dos principais representantes dos aborígenes após a vitória do «não»: «amarga ironia esta de um povo que está neste continente apenas há 235 anos recusar-se a reconhecer aqueles que vivem nesta terra há mais de 60 mil anos».
Mas há um caso que se passou comigo que ilustra bem a violência latente neste «não» ao referendo para, ao menos, se considerar a existência do povo aborígene australiano, primeiro passo para reconhecer a infindável lista de horrores por que passou este povo levado à escravatura e a todo o tipo de torturas psicológicas e físicas. Encontrei-me em Junho deste ano, por motivos familiares, num almoço que juntava toda uma diáspora dos seus membros. Durante o almoço, e à minha frente, estava presente um casal australiano. Ela de origem irlandesa (há seis gerações na Austrália) e ele indiano de Goa. Ambos falavam inglês e encontravam-se em Portugal, percorrendo em turismo a Europa. Em junho, preparava-se então o referendo. Reproduzo o diálogo que ia dando para o torto, não fosse ainda a prevalência do que se chama a boa convivência familiar:
- It's a madness, the fucking referendum! - afirmou algo revoltado o australiano goês (a partir de agora traduzo)
- O que é que é loucura? Não entendo, desculpe - afirmei eu honestamente, visto que não sabia nada do referendo.
- Como é possível que uma minoria da população possa ser ouvida sobre as leis de uma grande maioria. Os aborígenes não têm esse direito. Que façam partidos e concorram às legislativas!
- Desculpe, se é uma minoria e concorrerem às legislativas está à espera de uma maioria absoluta para governarem o que é seu por direito histórico?
- Que direito histórico? Se eles eles se portarem bem, se seguirem as regras da sociedade e cumprirem as leis, deixando o crime, a prostituição, o alcoolismo, então integram-se e a conversa é outra! Assim, como estão, it's a madness!
De repente reparei que estava a falar com uma irlandesa de seis gerações na Austrália (claro que os seus antepassados estavam livres de todos os crimes imputados na Irlanda, estava-se mesmo a ver!) e com um goês de origem indiana que, por casamento, estava no país e que tinha idade para ter conhecido a colonização portuguesa (também não entendia por que razão não falaria português tendo a minha idade, caraças!). Eram eles que se achavam no direito de ditar leis aos povos aborígenes e a ditarem as regras civilizacionais que acharam por bem imporem, desde o rapto de crianças para conventos católicos, os massacres em massa, as violações ou a escravatura generalizada como mostra a fotografia. É uma madness, sim. Acabei assim a conversa, deixando-o a ruminar alguma coisa contra mim que, evidentemente, não estava a par da realidade australiana! Quando lhe dei boleia no final, pediu-me para não ir pela autoestrada, antes por uma estrada nacional. Assim foi. Para o degelo se dar, ele entendeu dirigir-me uma palavra simpática sobre a paisagem de Portugal. Olhando para a mancha de eucaliptos que bordeava a estrada ele atirou-me com um «It's like Australia!». Não lhe dirigi mais a palavra.