segunda-feira, setembro 25, 2023

«Diário do Ladrão», Jean Genet

 

Diário do Ladrão, Minotauro, Setembro de 2022. Tradução de Miguel Serras Pereira
Jean Genet escreveu «Diário do Ladrão» em 1949, embora publicado clandestinamente um ano antes. Foi necessário Jean Cocteau inventar uma editora para que se desse a conhecer esta obra tão estranha, quanto ímpar na literatura. Sartre deu-lhe asas, isto é, sacaneou de tal maneira o seu «amigo» Genet, «santificando-o» e «interpretando-o», que este não lhe perdoou. Durante sete anos após um livro vergonhoso de Partre (para parafrasear Vian) sobre ele, chamando-lhe de Saint Genet e apodando-o inclusive de comediante, não escreveu mais nada, mas isso são contas de outro rosário e não será por acaso que o registo católico, em Genet, vem ao caso. Citaremos «O Sentido da Noite» para mais tarde analisarmos um pouco mais esta relação venenosa entre o papa do existencialismo e Jean Genet. Nessa ocasião prestaremos contas, agora vamos a este livro dificilmente ostracizado. Diríamos, mesmo, impossível de o esquecer se nos embrenharmos na sua leitura, despojando-nos de preconceitos sobre a maldição que ainda transporta seu nome.

Genet, foi abandonado pela sua família, conhecendo não só famílias de acolhimento, como também reformatórios cuja disciplina e crueldade foram do pior que se pode imaginar. Não encontro neste «Diário do Ladrão» nenhuma desculpa como é comum lermos em outras biografias idênticas, de indivíduos ou mulheres que optaram pelo crime. Nem sequer encontramos uma secreta alegria pela «reforma mais humana» dos reformatórios para crianças e do sistema prisional em geral, pelos anos 60 em França. Pelo que leio e sei, as prisões de França ainda são, hoje, das mais duras do mundo. Jean Genet tem uma trípode neste livro que apresenta: o roubo, a homossexualidade e a traição «(...) são os temas essenciais deste livro. Uma relação, senão sempre aparente, existe entre eles, pelo menos parece-me reconhecer uma espécie de comunicação vascular entre o meu gosto pela traição, o roubo e os meus amores.» (pág.174). O assassínio e a violência surgem como a ordem natural das coisas, uma evolução para um patamar superior, com cicatrizes deixadas no corpo como medalhas, por quem escolhe o tipo de vida que ele escolheu: «Sem me crer nascido magnificamente, a indecisão da minha origem permitia-me interpretá-la. Acrescentava-lhe a singularidade das minhas misérias. Abandonado pela minha família parecia-me já natural agravar esse facto através do amor dos rapazes e esse amor através do roubo, e o roubo através do crime ou da complacência perante o crime. Assim recusava decididamente um mundo que me recusara. (...) A prisão rodeia-me de uma garantia perfeita. Estou certo de que foi construída para mim - com o palácio de justiça, a sua dependência, o seu monumental vestíbulo. Segundo a maior seriedade tudo aí me foi destinado. O rigor dos regulamentos, a sua estreiteza, a sua precisão, são da mesma essência que a etiqueta de uma corte real, que a cortesia requintada e tirânica da qual nessa corte o convidado é objecto.» (páginas 89,90)

Genet assume uma vida perigosa em regiões e cidades perigosas em países perigosos, num mundo a explodir em violência para ele inaceitável. Roubou na Alemanha de Hitler e sentiu um verdadeiro asco em ver a aceitação da população perante verdadeiros criminosos que impuseram a ordem dos lager. Não é um paradoxo ou contradição de Jean Genet. É outra coisa: trata-se de uma coerência excepcional de alguém para quem o roubo é a vida, o florescimento da vida, tal como a prostituição aceite como natural desde a sua infância miserável. Mas colocar o crime no âmago do Estado era para ele insuportável. Conheceu igualmente Barcelona pouco antes da Guerra Civil e voltou lá após a guerra e soube estar ao lado dos que perderam, o que para ele era a lógica dominante na sua vivência. Errou por Antuérpia, Amesterdão, Bordéus, Marselha, a sua Paris e declarou que não haveria cidade da Europa em que não conhecesse um ladrão ou grupo constituído de ladrões. Fez o perfil destes grupos de criminosos, pequenos ou grandes, cujas leis internas variavam ao sabor das vontades, dos ódios ou do amor entre os seus elementos, fossem eles femininos ou masculinos. Para além de ladrão foi prostituto, assaltante armado, jogador, traidor dos seus, sentiu a miséria extrema de um sem-abrigo, a fome e a sujidade mais abjecta. E nisso, conseguiu ver a liberdade, a luminosidade santificada dos que abraçam o Mal e que por qualquer escuro caminho praticariam igualmente o Bem por desespero. «Desejo por um instante pôr uma atenção aguda sobre a realidade da suprema felicidade no desespero: quando se está só, de súbito, frente à sua perda súbita, quando se assiste à irremediável destruição da sua obra e de si mesmo.» (pág.214) «(...) mas sobretudo quero ser um santo porque a palavra indica a mais alta atitude humana, e farei tudo para aí chegar. Aí empregarei o meu orgulho e aí o sacrificarei.» (pág.215)

Há, contudo, um aspecto que não consigo compreender totalmente em Genet: o seu silêncio perante o processo literário. Quando e onde escrevia? Quando e onde lia? O que lia? Adivinho uma vida errante, de quarto em quarto, de pardieiro em pardieiro, de noites e dias fugidios e frenéticos, de prisões muitas. O seu vocabulário é abundante e certeiro. Sabe escrever bem, tem uma grande cultura (mais bíblica, é certo), sabe defender-se e explica porque escreve, mas na sua obra inicial não há momentos de contemplação, de busca e produção literárias. Após o reconhecimento que se lhe seguiu, sim, podemos perceber o tempo despendido nos livros, nas respostas e nas cartas a defender-se dos escândalos que sobre ele caía (óbvio!), os ataques e a censura oficial sobre ele, o abandono da literatura e o seu silêncio antes de enveredar pelo teatro, para ele mais verdadeiro e, talvez, mais livre de «segundas leituras»: «A menos que sobrevenha, de uma tal gravidade, um acontecimento tal que perante ele a minha arte literária seja imbecil e eu precise para dominar essa nova desgraça de uma nova linguagem, este livro é o último. Espero que o céu me surpreenda sem avisar. A santidade é fazer servir a dor. É forçar o Diabo a ser Deus. É obter o reconhecimento do mal. Há cinco anos que escrevo livros: posso dizer que o fiz com prazer mas acabei. Através da escrita obtive o que buscava. O que, sendo para mim um ensinamento, me guiará, não é o que vivi mas o tom em que o relato. Não as anedotas mas a obra de arte. Não a minha vida mas a sua interpretação. É o que me oferece a linguagem para a evocar, para falar dela, para a traduzir. Conseguir a minha lenda. Sei o que quero. Sei para onde vou. Os capítulos que se seguirão (já disse que um grande número se perdeu) deixo-vos avulsos.» (pág.210) A sua obra não foi somente «perdida»; sabemos que foi igualmente destruída por si. Genet suicidou-se em 1986.

António Luís Catarino