sexta-feira, setembro 29, 2023

«No Sentido da Noite», Jean Genet

 

Sistema Solar, Julho de 2016, Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes

Por mais que se leia, que se pesquise, que se pretenda conhecer melhor um autor como Genet, há sempre uma imensa lacuna, consequência do jogo tão legítimo, quanto narcísico, dos criadores em esconder os seus motivos, os seus sentimentos ou em utilizarem várias máscaras que são autênticas peças de um enorme puzzle, quase impossível de construir para um leitor, mesmo que atento ou interessado. 

Escrevi, quando do «Diário do Ladrão» traduzido por Miguel Serras Pereira, que Cocteau e Sartre sacanearam a obra e a pessoa de Jean Genet. Através da apresentação de Aníbal Fernandes em «No Sentido da Noite», conclui-se que haverá muitos mais. Não interessa nomeá-los, mas muita das «incompreensões» da obra de Genet surgem exactamente destas relações tóxicas mantidas durante anos por personagens da Rive Gauche que o ajudaram a editar e a ser conhecido no meio literário francês. 

Genet foi censurado pela rádio quando se opôs ao abrandamento da disciplina dos reformatórios para jovens delinquentes, sem que se percebesse totalmente o que afirmava, ele que por catorze vezes os habitou até aos dezasseis anos! Defendia que os jovens criminosos como ele esperavam do Estado, que os metia dentro das masmorras, o pior de todas as experiências de modo a atingirem um grau de expiação quase mítico. Genet que foi ladrão, pouco hábil, segundo as suas palavras aliás, foi preso pela primeira vez não por estes crimes, mas por viajar sem bilhete num comboio e por isso foi condenado a seis meses de reclusão! A contradição e crueldade mais obtusa do conhecido sistema prisional francês foi-se revelando sempre à medida que a sua idade progredia. Conheceu prisões e prisioneiros a que chamava de «colonos» lembrando a Guiana que entretanto foi abolida em 1961 como destino abominável de culpados ou não. Mas o sistema de reclusão era o mesmo, talvez pior pela falta de espaço, pelo confinamento absoluto e atrofia dos sentidos a que a personalidade do prisioneiro era submetida.

Genet amou e foi amado, foi traído e traiu, viu suicídios de amantes (ele que também se suicidou), viu, igualmente, demasiados mortos a tiro ou violentamente; foi nómada, politicamente empenhado no apoio ao imigrantes magrebinos em plena guerra da Argélia, esteve ao lado dos Black Panthers americanos e dos palestinianos, viu-se afastado pelos pensadores existencialistas dos cafés da moda que eles frequentavam. 

Genet escreveu sobre assassínios e viu a sua peça «As Criadas» ser representada como uma vulgar comédia e totalmente abastardada, mesmo após os seus apontamentos à representação serem pormenorizados ao milímetro de cada palco. Não acreditava em actores ou actrizes profissionais porque demasiados presos aos conservatórios oficiais e nada disso foi seguido. Depois de ter abandonado a literatura e a poesia, foi agora a vez de acabar com o teatro. Diz-se que rasgou ou queimou muita coisa que escreveu.

Volto ao princípio: como disse Sartre não sei se Genet (apodou-o de Saint Genet) era comediante ou mártir, o título do livro do filósofo que nunca lerei. Faltar-me-á sempre uma ou mais peças do puzzle para o considerar um escritor «maldito». Mas é inevitável ter de o ler. Só assim um pedaço proscrito da humanidade se pode juntar ao imenso «público de mortos», afinal os espectadores do teatro de Genet.

António Luís Catarino