sábado, maio 27, 2023

"Viagem ao Fim da Noite", Louis-Ferdinand Céline


Edição da Ulisseia, Babel. Tradução de Aníbal Fernandes. Capa de Henrique Cayatte 2014. 6' edição 

Voltar sempre a Céline, pois.

« - Tens assim tanto medo?
- Mais do que isso, Lola. Tanto medo, vê bem, que se eu morrer mais tarde de morte natural, o que acima de tudo não quero é que me queimem! Gostaria que me deixassem na terra, a apodrecer no cemitério tranquilamente e pronto a reviver talvez. nunca se sabe! Ao passo que queimado até às cinzas, Lola, tudo está acabado e bem acabado, compreendes?... Apesar de tudo um esqueleto ainda se parece alguma coisa com um homem...Está sempre mais apto a reviver do que as cinzas...As cinzas...acabou-se O que dizes tu?...E nesse caso a guerra...
- Oh! És de facto um grande cobarde, Ferdinand! Tão repugnante como um rato...
- Sim, de facto um grande cobarde, Lola, recuso a guerra e tudo o que tem dentro...Não a lamento...Não me resigno...Não choramingo por minha causa...Recuso-a por inteiro, com todos os homens que ela contém, não quero nada com eles nem com ela. Fossem novecentos e noventa e cinco milhões de um lado e eu do outro, não teriam razão, Lola, quem tem razão sou eu porque só eu sei o que quero: não quero morrer.
- Mas é impossível recusar a guerra, Ferdinand! Só os loucos e os cobardes recusam a guerra quando a sua Pátria está em perigo...
- Então vivam os loucos e os cobardes! Ou antes, sobrevivam os loucos e os cobardes! Recordas um só nome, Lola, de um dos soldados mortos durante a Guerra dos Cem Anos?...Alguma vez tentaste conhecer um só desses nomes?...Não, por certo...Nunca tentaste? Para ti também são anónimos, indiferentes e mais desconhecidos do que o último átomo deste pisa-papéis aqui à nossa frente, ou a tua torrada matinal...Vê lá tu como morreram para nada, Lola! Para absolutamente nada, esses cretinos! Afirmo-o! A prova está tirada! Só a vida conta. Aposto que esta guerra, tão importante como nos parece, daqui a dez mil anos estará completamente esquecida...Haverá uma dúzia de eruditos, quando muito, a brigarem aqui e além por causa dela e a propósito das datas das principais hecatombes que a ilustraram...E é tudo o que os homens até este momento conseguiram encontrar de memorável a respeito dos outros, a alguns séculos, a alguns anos e até a algumas horas de distância...Não acredito no futuro, Lola...»
Págs. 72 e 73

«Eu tinha o hábito e até mesmo o gosto destas íntimas e meticulosas observações. Por exemplo, quando nos detemos no modo como são formadas ou proferidas as palavras, as nossas frases não resistem lá muito ao desastre do seu cenário baboso. Mais complicado e aflitivo do que a defecação é o esforço mecânico da conversa. A corola de carne entumecida, a boca que se convulsiona a soprar aspira e debate-se expele toda a espécie de sons viscosos através da barragem pestilenta da cárie dentária, que castigo! No entanto, aí está o que nos exortam a transpor em ideal. É difícil. Como não passamos de recintos com tripas mornas e quase apodrecidas, havemos sempre de ter dificuldades com o sentimento. Estarmos apaixonados não é nada, mantermo-nos os dois juntos é que é difícil. A imundície, essa, não procura resistir nem desenvolver-se. Aqui, neste ponto, somos bem mais infelizes do que a merda; no nosso estado, a fúria de preservação constitui uma tortura incrível.
Decididamente, não adoramos nada mais divino do que o nosso cheiro. Toda a nossa infelicidade resulta de termos de continuar a ser Jean, Pierre ou Gaston, custe o que custar e durante um ror de anos. Este corpo, fantasia carnavalesca de moléculas excitadas e banais, a todo o instante se revolta contra a farsa atroz da sobrevivência. As nossas moléculas, essas queridas, querem dispersar-se o mais possível pelo universo! Sofrem por só terem de ser «nós», cornos de infinito. Explodiríamos se tivéssemos coragem, apenas falhamos, dia após dia. Atómica, a nossa adorada tortura encerra-se com o orgulho ali, na nossa própria pele.»
Págs. 311 e 312