A Eduarda empreendeu a viagem que nunca esperamos. No caso dela, sinto a sua morte como um choque tremendo que noutros casos de amigos não senti, assim, tão violento. Acho injusto. Quase inverosímil e, provavelmente é-o, para pessoas que deixaram o rasto que ela deixou nas lutas que empreendeu e no que escreveu ou pintou. Prometi não fazer epitáfios, mas exige-o neste momento de dor, incompreensão pela finitude, mesmo que saibamos todos ser inevitável e por uma questão de ser impossível a sua substituição. A Diana, a menina reguila que conheci como criança vai levar adiante o trabalho da mãe, tal como o do avô. É gente de fibra.
A Eduarda tinha tanto de afável como de mau feitio e isto é sempre um elogio para as fortes convicções que ela apresentava. Este último, nos anos 90, quando tentávamos no PSR organizar a luta por um sindicalismo docente renovado, fora da modorra política, que os burocratas lhe imprimiam na Fenprof, era o que mais se fazia sentir. Acredito que lhe faltava a paciência para a negociação de listas de oposição sindical ou participar em jogos palacianos. Interessava-lhe muito mais a base, as decisões de base, legitimadas por assembleias livres. Aconteceu isso em 93 no encontro alternativo de Buarcos mas com êxito relativo, por falta de constituição de uma corrente revolucionária na classe docente. Quanto à literatura e pintura, a Eduarda transformava-se e entusiasmo transbordava nela e quantos a rodeavam. Não concebia qualquer elitismo literário ou artístico, tão comum nos meios da cultura. Ela era assim. Só uma única vez a vi irritada quando lhe dissemos que os seus livros, que líamos sempre, retratavam de facto uma geração e que necessariamente influenciariam outras que viessem. Na ocasião, rebateu ponto por ponto os elogios (não eram somente elogios) falando do comércio livreiro e editorial como um empecilho que estava, já no final dos anos 80 e, depois, nos 90, a vender-se à cultura anglo-saxónica, em detrimento da nossa. A normalização ocidental, europeia, em marcha, pois. Que ela não deixou de registar e denunciar. A Revolução em ponto morto até fazer marcha atrás com o cavaquismo. Aprendi muito com a Eduarda.
Nestas ocasiões uma pessoa não deve falar de si. Mas, subitamente, a morte de Eduarda Dionísio veio calar fundo. Com força. Lembrei-me da Rua da Palma, do PSR e da força da esquerda alternativa em crescimento no início dos anos 90. A luta contra os skinheads que assassinaram cobardemente José Carvalho. A importância crescente do jornal Combate onde a Eduarda Dionísio participou activamente. E cada vez que, por motivos políticos e partidários, eu chegava a Lisboa, lá se juntava um grupo inteiramente informal onde pontificava o Carlos Prazeres Ferreira, a Guida, o Juba, o Zuzarte, a Eduarda e o Maçarico, seu companheiro. As noites, então, prolongavam-se. Nas férias grandes, em Melides, lá íamos à casa do Prazeres Ferreira ou do Zuzarte e repetiam-se as longas conversas, o desfilar de memórias, os projetos individuais e colectivos, os almoços magníficos e intermináveis.
Penso, com esta viagem inesperada da Eduarda, que nenhum destes amigos que referi neste grupo se encontra já entre nós. Por isso, hoje, sinto-me bastante sozinho. A Eduarda Dionísio tornar-se-á uma referência para qualquer inconformista que ainda pense que a transformação social e cultural se fará sempre por revoluções cada vez mais prementes. Ela deixou um caminho válido e isso é que importa.
Até breve, Eduarda Dionísio.