Relógio D'Água, 2018. Desenhos de Rachel Caiano
Gonçalo M. Tavares já nos habituou quer ao seu registo, quer às extraordinárias obras que escreve. Provavelmente caso único entre os chamados «novos» autores contemporâneos, tem-se afirmado desde há anos como um dos mais sólidos e coerentes escritores, caso só possível cá no burgo por apresentar uma escrita que tem tanto de pessoal como de honesta. Gonçalo M. Tavares vive no seu mundo, abraça-o, entra por ele adentro e um leitor atento sabe perfeitamente que o que escreve e sente é genuíno. Vive lá e leva-nos, com uma escrita tão precisa como depurada, para o seu mundo. Nós agradecemos, não sabendo bem como retribuir. Mas talvez lendo (antes ou depois, eu prefiro como leitor, ler antes) os seus escritores - e aqui limito-me somente à série do seu Bairro! - seja uma forma tão legítima como outra qualquer de uma relação entre quem tem um livro para com o seu escritor.
Foi o que me aconteceu, a tal ligação entre Robert Walser e Gonçalo M. Tavares, com a leitura de «O Senhor Walser e a Floresta». É evidente que antes li «As Caminhadas com Robert Walser» do Seelig, «Cinza, Agulha Lápis e Fosforozitos», «A Rosa» e «O Ajudante» para ter uma ideia mais geral do que iria encontrar em «O Senhor Walser...» e foi extremamente bonito com o que me deparei.
Walser tem finalmente uma casa. Ainda assim longe do Bairro imaginado por Gonçalo M. Tavares e com desenhos belíssimos de Rachel Caiano onde «moram» Musil (nunca negou a influência de Walser), Brecht, Eliot, Calvino (que o referiu), Kafka (que o elogiou), Breton, Wittegenstein (que o analisou) e muitos outros que fazem parte do sonho vivíssimo do escritor e também partilhado por nós. Mas, dizia eu, Walser na sua vida real só conheceu praticamente a casa da sua família até aos 19 ou 20 anos, ou até menos, se não estou enganado. Trabalhou em várias casas como secretário, em quartos, e depois viveu em hospícios (perto de 27 anos), sendo o último em Herisau no cantão alemão da Suíça. Nota-se em toda a vida de Walser a nostalgia de um lar que provavelmente nunca teve, ou se o teve, acabou depressa. Ora, Gonçalo M. Tavares arranja-lhe uma casa longe do eventual bulício do Bairro de escritores, poetas, filósofos e dramaturgos, na orla da floresta onde ele se sentiria bem, visto que era um entusiasta das grandes caminhadas. Encantava-se com as cores, o vento a água, os cheiros e as estações da Natureza que ele amava e se sentia seguro. Era um escritor, um poeta das pequenas coisas e são exactamente as «pequenas coisas» que vêm pôr em causa a bonomia da sua existência numa casa que ele experimentou por um dia. Sejam estas «pequenas coisas» uma torneira, uma tábua, um buraco no telhado... e fico-me por aqui porque não quero contar o resto. Como se faz no cinema ou no teatro quando aconselhamos um amigo a ir ver. Aliás, o livro tem igualmente muito de cinematográfico ou dramático. Uma maravilha lê-lo. O próximo será Kraus ou Breton? Não sei. Só sei que vai acontecer.