Assírio & Alvim, Março de 2023
Selecção, tradução e prefácio de Ricardo Gil Soeiro
Duvido muito que alguém que leia este livro extraordinário e não conheça suficientemente o autor suíço, não procure a sua bibliografia e a devore de imediato. Ficará a saber que alguns já se encontram esgotados, por isso será melhor recorrer aos que ainda existem nas livrarias e, nas feiras do livro ou alfarrabistas, tentar a hipótese de conseguir alguns exemplares que já não se encontram no tal mercado.
Percebemos que o responsável desta edição foi Ricardo Gil Soeiro que a traduziu do alemão (cantão a que pertenceu Robert Walser) e optou pelo diminutivo final -ito. Creio não ter sido por acaso (nesta tradução excelente, nada o é, diga-se) e este sufixo é ele próprio muito mais acolhedor e terno que o -inho muito mais comum em português. A selecção dos vinte textos para este livrito estende-se de 1901 a 1932 e nota-se a grande coesão e coerência literária dos contos e pensamento de Robert Walser. As referências que Ricardo Gil Soeiro utilizou demonstram a importância do poeta, citando no seu prefácio Agamben, Walter Benjamim, Calvino, Canetti, Sebald, Susan Sontag ou Vila-Matas, entre outros.
O autor teve uma vida atribulada passando 20 anos em hospícios e 25 sem nada escrever. Aliás, convenço-me cada vez mais que os hospícios e sanatórios foram o gulag da Mitteleuropa para poetas e indesejáveis. Os que tiveram sorte, porque os que não tinham dinheiro iam para a prisão sem o mínimo das comodidades que apresentavam as famílias, como as de Walser, com alguns recursos. É uma figura muito difícil de compararmos (e porque o devíamos fazer?) com alguém do seu tempo. Adverso à chamada «grandeza literária» ou à exposição, fazia longas caminhadas de horas por bosques e pelas estradas observando e discorrendo sobre as pequenas coisas insignificantes com um amor e carinho inexcedíveis. Um leitor que tenha o mínimo de sensibilidade sabe do que falo quando deparamos com a descrição de um lápis como este excerto:
«(...) No quer diz respeito ao pequeno lápis, aquilo que o torna tão valioso, como já todos sabemos, é quão afiado ele se vai tornando, até que não haja mais nada para afiar e, tornando inutilizável pelo uso impiedoso, o deitamos fora, pelo que não ocorre a ninguém, nem mesmo de longe, expressar uma palavra de apreço e de agradecimento pelos seus múltiplos serviços. O irmão do lápis chama-se lápis azul e, como já tem sido dito de tempos a tempos, os dois desafortunados lápis amam-se como irmãos, estabeleceram entre si uma frágil e profunda amizade para toda a vida.(...)» (pág.20)
Ou sobre si próprio:
«(...) Desejo, pois, ser ignorado. Se, ainda assim, alguém quiser prestar-me atenção, pela minha parte não prestarei atenção àqueles que prestam atenção. A escrita dos meus livros anteriores não foi forçada. Creio que escrever muito não garante uma escrita de qualidade. E que não me venham falar dos ''primeiros livros''! Que estes não sejam sobrevalorizados e que se tente compreender o Walser vivo, tal como ele é.» (pág. 121)
Finalizo com um excerto do prefácio de Ricardo Gil Soeiro (ele próprio um poeta) que nos dá uma ideia mais aproximada e real da escrita de Walser: «(...) Uma espécie de Paul Klee da prosa (a imagem é de Susan Sontag), Walser esculpe límpidos parágrafos, frases musicais em filigrana que fluem como água escorrendo entre os dedos. Adoptando um olhar minucioso sobre as ninharias do mundo, as suas páginas exumam uma desconcertante ternura, fina tapeçaria escrita em sotto voce simultaneamente graciosa e amarga, como sublinha Walter Benjamim.
Enrique Vila-Matas definiu-o, com propriedade, como pioneiro da arte da desaparição, incluindo-o em Bartleby e Companhia, na galeria dos mestres da recusa, na longa linhagem dos partidários do Não. (...)» (pág.10/11).