Antígona, 2008. Trad. de Frederico Ágoas e José Neves
Quem pensa que a chamada «multidão» em pleno século XVIII , e antes, por todo o século XVII, era uma turba desorganizada e ao sabor de emoções primitivas terá uma surpresa neste livro de E.P.Thompson. O historiador inglês apresenta-nos factos e fontes fidedignas que a economia moral dos subalternos tentou lutar, muitas vezes de armas rudimentares nas mãos, contra o capitalismo agrícola e industrial que começava a nascer com o liberalismo baseado na acumulação de terras nas enclosures e na acumulação de capital financeiro e industrial, de mãos dadas, que veio a sair vencedor no século XIX e XX. A luta foi renhida e mais organizada do que se pode pensar numa primeira observação. Assim o atesta em várias fontes coevas, muitas delas anónimas, que Thompson nos apresenta. Sobre o preço do pão e a necessidade de repartição igualitária das terras, levadas a cabo quer pelos Levellers (niveladores), quer pelos Diggers (cavadores) ou, mais tarde pelos Luddistas. Embora o milenarismo não esteja completamente arredado destas lutas o que sobressai é a emergência de uma nova sociedade, baseada não na diferenciação do nascimento, mas sim pelo trabalho. Não por acaso, a repressão brutal abateu-se sobre todos eles, fazendo com que estes movimentos libertadores tivessem desaparecido da crosta da Terra. Não sem que o imaginário popular as tivesse recordado até hoje. E o trabalho do historiador reflecte bem que o liberalismo defendido por Adam Smith nunca funcionou, no que à distribuição de alimentos do campo se refere. A necessidade da existência de intermediários foi sempre uma aposta do liberalismo, originando muitas vezes uma desregulação de preços e açambarcamento que as populações lutaram de modo violento de modo a evitar períodos de fome. O sentimento anti-intermediários foi um dos vectores da «economia moral» que pretendia fixar os preços dos alimentos e principalmente dos cereais. Adam Smith equiparou-a a uma espécie de «bruxaria».
Vejamos alguns exemplos de panfletos anónimos:
Sobre a liberdade (1768):
«Não se pode dizer que se trate de liberdade de um cidadão, ou de alguém que vive sobre a protecção de qualquer comunidade; trata-se antes da liberdade de um selvagem; e assim sendo, aquele que disso se aproveita não merece a protecção concedida pelo poder da Sociedade.» (pág.36).
Título de um ensaísta anónimo (só por si este título é todo um programa):
«Um Ensaio para Provar que Revendedores, Monopolistas, Açambarcadores, Bufarinheiros e Intermediários do cereal, Gado e Outros Bens Comercializáveis...São Destruidores de Comércio, Opressores dos Pobres e Uma Praga Comum para o Reino em Geral.» (pág.49)
Carta anónima dirigida a J.S.Girdler, juiz de paz em Middlessex (1796-1800):
«Sabemos que és inimigo de agricultores, moleiros, farinheiros e padeiros do nosso Comércio - se não tivesse sido graças a mim e a outro, tu, meu filho da puta, terias sido assassinado há já muito tempo por ofereceres as tuas malditas recompensas e perseguires o nosso Comércio. Que Deus te amaldiçoe e demonize, tu não viverás para ver outra colheita (...)» (pág.51/52)
Motim de mineiros em Padstow em Shropshire (1773):
«Algumas pessoas levaram longe demais a exportação de cereal (...). Setecentos ou oitocentos mineiros de estanho foram até lá, oferecendo de início aos negociantes de cereal 17 xelins por 24 galões de trigo; todavia, sendo-lhes dito que nada obteriam, de imediato arrmbaram as portas do armazém e levaram tudo o que aí havia, sem dinheiro ou preço.» (pág.56)
Outro aviso em Northiam (Sussex) aos agricultores que aceiram as novas medidas de alqueire do parlamento (1793):
«Cavalheiros, tudo o que esperamos é que tomem isto como aviso a todos os que deixem de lado os pequenos alqueires e retomem a antiga medida, pois, caso não o façam, um grande agrupamento incendiará as pequenas medidas quando vocês estiverem na cama e a dormir e, com elas, as vossas medas, os vossos celeiros e vocês mesmos (...)» (pág.62)
Escreve E.P.Thompson em jeito de conclusão sobre a eficácia destas lutas baseadas nesta «economia moral» da multidão na Inglaterra do século XVIII:
«Na verdade, o motim de subsistência não requeria um elevado grau de organização. Requeria, sim, um apoio consensual junto da comunidade e um padrão de acção herdado, com restrições e objectivos que lhe eram próprios. E a persistência desta forma de acção levanta uma questão interessante: até que ponto seria ela, fosse de que forma fosse, bem-sucedida? Teria ela persistido durante tantos anos - centenas de anos, na verdade - se os seus objectivos fracassassem constantemente e deles resultassem senão uns quantos moinhos destruídos e algumas vítimas na forca?» (pág.90) Mais à frente, o historiador refere como um factor de regulamentação do mercado a própria «expectativa do motim» como dissuasor de açambarcamento ou de aumento generalizado de preços à maneira liberal.
Carta de Witney, um dos mais destacados dos Levellers, em 1767, sob a forma de rima popular (págs.104/105):
«(...) Um pequeno Exército de mais três mil, prontos para a luta final,
E maldito eu seja se não fizermos em merda a Tropa Real,
Se o Rei e o Parlamento continuarem a mandar à sua maneira,
faremos de Inglaterra uma lixeira.
E se não baixam os preços dos mantimentos,
Maldito eu seja se não resolver o problema incendiando o Parlamento (...)
De qualquer modo, os movimentos populares e violentos dos trabalhadores do campo e pequenos agricultores, no início do século XIX, foram ultrapassados pelos luddistas devido quer à sangrenta repressão militar, quer à pressão sobre os salários nas indústrias com uma incipiente organização sindical clandestina, com juramentos: os United Englihsmen.