BCF Editores, 2019. Trad. Bernardo Ferro. Prefácio à edição portuguesa por Hans Ulrich Obrist
Em 1957, um ano após a morte por ataque cardíaco de Robert Walser, numa dessa inúmeras e longas caminhadas que realizava de um modo quase obcecado pelas montanhas do cantão alemão da Suíça, o seu tutor e amigo Carl Seelig edita as suas memórias dessas mesmas caminhadas a que se juntaram conversas, ideias e pensamentos daquele autor entretanto internado no sanatório de Herisau. Esse internamento durou vinte anos, sem que Walser tenha escrito alguma coisa. Com um espírito tão particular e entremeado com alguns episódios esquizofrénicos conseguiu um registo literário único em que recorre várias vezes à observação minuciosa da cor, da natureza, dos objectos, das pequeníssimas coisas da vida, recusando toda e qualquer vontade de atingir epítetos literários ou atingir o grau de «grandeza literária» que ele abominava. Quanto mais se conhece este autor, mais queremos saber sobre ele. Deparamos, então, com esse pensamento através da contribuição de Carl Seelig que juntou apontamentos (alguns mais antigos perderam-se, infelizmente) e registos dessas mesmas caminhadas.
As opiniões versam sobretudo sobre si próprio e na vida, algo agitada para um jovem de 20 anos, que esteve em Berna e Zurique e nas suas relações com a família que ele não gostava de invocar, principalmente a relação que manteve com o irmão mais velho Karl Walser, que foi um pintor importante e que faleceu antes dele, e com a sua irmã Lisa que ele «culpava» do internamento compulsivo em Herisau. Mas tinha por ela um amor particular, realçando o seu carácter católico como a causa dessa decisão. Fala a Seelig por várias vezes da condição de poeta e escritor o que não deixa grandes encómios e elogios aos seus contemporâneos, fossem eles alemães, americanos, suíços, russos, franceses ou ingleses. Não lhes perdoa a subserviência para os poderosos e a arrogância para com os leitores. Refere-se igualmente a Hölderlin e a os poetas e escritores que foram dados como loucos. Durante a II Guerra Mundial, enquanto caminha com Seelig desenvolve as suas teorias para com Hitler que detesta com a sua vulgaridade e violência inane e Estaline que tem tanto de génio militar, como de sanguinário.
Sobre si próprio: «Houve sempre conspirações à minha volta para repelir vermes como eu. Aquilo que não cabe no mundo de cada um é sempre nobre e orgulhosamente repelido. Pela minha parte nunca ousei forçar a entrada nesse mundo. Não teria sequer coragem para espreitar para o seu interior. Foi por isso que vivi a minha vida à margem das existências burguesas. E não foi melhor assim? Não terá o meu mundo também direito a existir, ainda que se trate, aparentemente, de um mundo mais pobre e impotente?» (pág.50)
Robert Walser para Carl Seelig: «Sabe porque não me tornei um escritor de sucesso? Quero dizer-lhe: é que não possuía um instinto social suficientemente desenvolvido. Não representei o suficiente para a agradar à sociedade. (...) A minha estreia literária gerou logo a impressão de que os bons burgueses me aborreciam, de que não os achava bons o suficiente. E eles nunca o esqueceram. Consideraram-me sempre um zero à esquerda, um inútil. Deveria ter misturado nos meus livros um pouco de amor e tristeza, de solenidade e de aprovação (...)» (pág.59)
Sobre a velhice: «Só uma percentagem extraordinariamente pequena de pessoas sabe apreciar a velhice. E, contudo, ela pode oferecer grandes alegrias. É sabido que o mundo tende a regressar, sempre de novo, às coisas simples, elementares. Um instinto saudável leva-o a opor-se que a excepção ou a estranheza se tornem dominantes. A voracidade inquieta com que se deseja o sexo oposto extingue-se e passa-se a desejar apenas o conforto da natureza e a beleza das coisas concretas, que estão ao alcance de quem as procura. Livres, enfim, de toda a vaidade, abandonamo-nos à grande quietude da idade, semelhante a um reflexo suave da luz do sol.» (pág.80)