Relógio D'Água, 2006 e 2004 respectivamente.
Tradução de Isabel Castro Silva para «O Ajudante»
e Leopoldina Almeida para «A Rosa»
Após ler estes dois livros de Robert Walser (eu dizia anteriormente que tomar conhecimento da vida deste autor suíço me iria obrigar a conhecer melhor a sua produção literária) fiquei com a sensação nítida que temos diante de nós um escritor de excepção. Mesmo que ele recuse o epíteto e gostasse de ser esquecido, absorvido pelo tempo e pela morte, a percepção que ele tinha do que deveria ser a literatura e a poesia veio confirmá-lo como insubstituível, incomparável. Foi percursor do estilo de Kafka, Musil e até de Wittgenstein e «descoberto» por Agamben, Susan Sontag, Sebald entre outros, mas é único na procura do entendimento das pequenas coisas da vida, das palavras com sentido preciso, sem qualquer adjectivo a mais ou a menos, apresentando uma ironia desarmante e um olhar para si próprio que se reflecte nos outros nos seus dramas, nas suas alegrias, ou no seu desespero com as várias faces que se lhes apresentam na vida.
A leitura destes dois livros, os primeiros que li de Robert Walser (outros seguir-se-ão obrigatoriamente) apresentam-me duas hipóteses que passo a expôr: em primeiro lugar a sua ligação que pende entre o erotismo, o galanteio inofensivo ou a admiração longínqua para com as mulheres de todas as condições sociais; em segundo lugar, a sua ligação, talvez efémera às teses socialistas do seu tempo, embora a tenha apresentado mais tarde com algumas reticências «Viviam-se então tempos extraordinários num mundo extraordinário. Uma ideia a um tempo misteriosa e familiar, a que chamavam ''socialismo'', lançara-se como uma frondosa planta trepadeira para dentro das cabeças e em torno do corpo de todos, mesmo dos mais velhos e experientes, de tal modo que tudo o que era poeta ou escritor, tudo o que era novo e precipitado a agir e decidir se ocupava desta ideia.» (pág.104 de «O Ajudante»); em terceiro, a chamada compaixão pelo outro, pela solidão ou fraquezas adictas, sejam o álcool ou o jogo, pelo desemprego e pela miséria que também ele experimentou; por último a necessidade de um lar que lhe faltou e que vem bem expresso em «O Ajudante» onde experimenta em casa dos Tobler uma verdadeira família que se esvai paulatinamente numa força centrípeta e implacável da ruína económica e pessoal.
A sua ligação à Natureza, bem transcrita nos seus livros, e onde encontra a paz que procura acontece quer em «O Ajudante», quer em «A Rosa», mas também com uma força evidente nas «Caminhadas com Robert Walser» de Carl Seelig, seu tutor, quando Walser se encontrava no hospício de Herisau.
Sobre este último, refiro-me a Carl Seelig, creio ter percebido a falta de referência em «Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos» editado este ano (2023) pela Assírio & Alvim e sob o rigor e responsabilidade de Ricardo Gil Soeiro que o antologiou, comentou e traduziu. De facto, já em «Caminhadas com Robert Walser», tinha reparado numa transcrição - quase são actas desses mesmos registos! - que Seelig faz de um sarcasmo de Walser quando este lhe pergunta como se sente, como tutor, a gerir os seus direitos de autor! Olá... essa ironia não me passou despercebida e creio que houve ali uma certa amargura (de não ter casa ou dinheiro seu), tal como a sua recusa em escrever ou em teimar na realização continuada de pequenos trabalhos motivacionais no hospício (dobrar envelopes, por exemplo), sendo até rude quanto aos elogios que Seelig lhe faz, como a uma «carreira» literária ou referindo a admiração e crítica elogiosa registada em jornais pela sua obra. Soube, pela leitura de «O Ajudante» que Seelig após a morte de Robert Walser em 1956 mandou destruir uma enorme quantidade de pequenas anotações quase cifradas que ele escrevia em folhas de jornais, simples papéis rasgados, recibos, etc. Ainda bem que a sua ordem não foi levada a cabo e essas impressões foram, de facto, salvas. Ao contrário de outros, cujos poemas, notas, mesmos novelas ou romances ficaram destruídos para sempre. Não consigo esquecer o que aconteceu ao espólio de António Maria Lisboa, por exemplo, cujo pai e irmã queimaram o que encontraram escrito por esse poeta solar. Mas repito que só a leitura do trabalho de Robert Walser pode dar-nos uma visão global da importância universal deste escritor suíço.