segunda-feira, março 25, 2013

Extracto de Suicidas, de Henrique Manuel Bento Fialho, a sair na Deriva


Muito em breve, Henrique Manuel Bento Fialho, apresentará o seu novo livro na Deriva. O seu título é Suicidas e segue-se a Estranhas Criaturas. É de Suicidas este extracto que colocamos aqui sobre Antonin Artaud.

ANTONIN ARTAUD
Artaud estava do lado de Tuiavii, havia nele a voz selvagem dos mestres, o sentido da tradição oral, era um homem experimentado a contar uma história de terror enquanto os tambores ressoavam a trovoada nocturna dos anseios recalcados. Cada dente que lhe faltava na boca assinalava um exorcismo. Eram reais as aranhas que lhe saíam pelo cu, tinha um modo de escarrar no qual pressentíamos uma música singular, por isso mesmo doentia, porque tudo o que ousa afirmar-se em ruptura com a lógica dos tribunais é tomado por loucura.
   Ora, desde muito cedo benzido, desde muito cedo iniciado nas tradições do mau-olhado, aprendi a libertar-me do quebranto em pratos de azeite pingados com vinagre. A minha mãe levou-me às bruxas, fui gótico, toquei o xilofone dos nervos enquanto me curvava para receber a extrema-unção. Naquele tempo, as oliveiras ainda eram vergastadas e ao rio íamos colher mergulhos na lama. Bebíamos directamente da teta das cabras, víamos passar os mendigos com uma estranha admiração, porque também nós não apreciávamos o banho a horas certas. Preferíamos erguer casas no topo das árvores, fazer o ninho nas asas dos índios, correr com os ciganos do bairro porque éramos mais ciganos que eles. Talvez tenha começado aí um certo sentido da contradição social, ao observar o gosto que a ciganagem punha em romper com as suas tradições, em vestir-se como os betos do outro lado da rua, aqueles que tinham piscina onde mergulhar as mães nuas e irmãs de rata ao léu. Talvez tenha sido essa a primeira experiência de que resistir implicava não abdicar de um eu misterioso, indecifrável, livre, coerente com as suas próprias ambiguidades, um eu obstinado e livre o suficiente para se poder iludir com voluntariedade e um profundo sentido da divergência. (...)
Henrique Manuel Bento Fialho, Os Suicidas, Deriva, 2013. A sair
Extracto da responsabilidade do editor.