Afrontamento, Março de 2019, 270pp.
Pode a poesia experimental e visual ser um instrumento de aprendizagem para as crianças? Pode. E a prova, mais que evidente, reside nas propostas descritas neste livro tão interessante, como imprescindível para quem tem contactos com crianças. A autora, Estela Rodrigues, terminou em 1978 o curso em Educação de Infância e em 1986 licencia-se em Estudos Portugueses pela FLUP. Em 2009 faz o mestrado com a dissertação «A Emergência da Literacia em contexto de Jardim de Infância», na área de Psicologia, na FPCEUP. Foi, durante 27 anos educadora, «intermediados por treze anos na formação de educadores de infância na Escola de Magistério Primário, na Escola Superior de Educação do Porto, nas Universidades do Minho e de Aveiro.» Envolveu-se desde 1983 na APEI, no Movimento Escola Moderna e no Instituto de Comunidades Educativas. Feita a apresentação passemos aos objectivos que podem ser bem resumidos nas suas palavras:
«Os objetos de conhecimento/sentido estético e o carácter subversivo das Poéticas Experimentais são estranhos e, em certa medida, desconstrutores de estereótipos das culturas de pertença contagiadas por padrões veiculados por determinados estilos de vida e pelas indústrias de entretenimento. Assumo essa desconstrução como educadora que se demarca da tarefa de reprodução massificadora.»
Maria Assunção Folque, na apresentação do trabalho de Estela Rodrigues, esclarece que estamos perante uma obra que «é um dos textos mais inspiradores e desafiantes que tenho lido sobre o conhecimento profissional de uma educadora de infância.» Partilho totalmente esta opinião e a minha leitura de «Pensar a Imagem, Olhar o Texto» com o subtítulo «Experimentos poéticos na educação de Infância» constituiu de facto uma rajada de ar fresco na secura do que para aí anda de obras de carácter pedagógico, seja para a infância ou para outras idades. Aliás, a proposta da autora é clara quanto a isso: se a partir de Bruner podemos garantir que toda a complexidade poética pode ser trabalhada honestamente com idades infantis (a experiência de Estela Rodrigues foi realizada com 25 alunas e alunos entre os 4 e os 6 anos, num Jardim Infantil Público do Porto), nada impedirá que o seja igualmente para todas as idades e ciclos de aprendizagens e de todos os níveis de ensino. Queiram os professores e os mestres, porque nas opiniões registadas por poetas experimentalistas da PO.EX ou brasileiros referidos por Estela Rodrigues e alvos do trabalho com as crianças, estas foram ganhas de imediato, sem que isso signifique não afastar alguma complexidade e dificuldade na construção - desconstrução - construção dos poemas visuais, experimentais, espaciais ou concretos apresentados às crianças. O livro em si é uma pesquisa constante. Obriga-nos à consulta e à marcação de páginas, principalmente ao Capítulo I, «Aproximação às Poéticas Experimentais», para mergulharmos em alguns autores incontornáveis desta forma poética como Melo e Castro (Pêndulo, de 1962), António Aragão com o seu provocador (Telegramando, de 1965), Salette Tavares (Aranha, de 1964 e com mais poemas neste livro cuja ideia subjacente ao Brincar está sempre presente nas suas propostas), António Barros (com o seu icónico Escravos, de 1977), Ana Hatherly (O Mar que se Quebra, 1998) e muitos outros, como Emerenciano, Eurico Gomes, Manuel Portela ou César Figueiredo. Não conseguindo, aqui nesta ficha de leitura, dar conta de todas as expressões que foram (ou que poderão vir a ser) trabalhadas por alunos e analisadas por Estela Rodrigues não deixarei de prestar a atenção devida à referência da «Land Poetry», principalmente de Fernando Aguiar, cujos recursos, utilidade e emergência poderão via a dar frutos nas nossas escolas sujeitas a programas completamente desajustados, ultrapassados e enfadonhos. Este livro não deixa de ser, igualmente, um interessantíssimo e útil trabalho enciclopédico.
Rui Torres, coordenador do arquivo digital da PO.EX., e também ele poeta, assina o prefácio a «Pensar a Imagem, Olhar o Texto». Vale a pena assinalar o que escreve sobre a já referida Salette Tavares : «(...) Aliás, Salette Tavares terá sido quem mais insistiu nesta pedagogia do olhar da poesia e da infância como a tomada de consciência em relação à componente lúdica da linguagem. Brincar, dizia, ''é um estado natural e permanente. (...) [e] com poucos brinquedos, tudo era brinquedo, folhas, frutos, gafanhotos, terra, lata e até nada. E este nada é importantíssimo. [carta a Ana Hatherly]''. Como mãe e educadora, transmitia aos seus filhos esta relação entre palavras e coisas, derivando dessa educação grande parte da sua ''produção poética'' que esteve, aliás, presente na exposição ''Brincar'': objectos que fizeram juntos na descoberta da linguagem. Ao recriar o mundo no convívio dos objectos, Salette Tavares testemunhava uma aprendizagem pelos sentidos. O seu aviso foi muito claro: ''É preciso que não separemos as crianças dos jardins e não as deixemos morrer atrofiadas pelas lojas de brinquedos que, como todas as lojas da civilização de agora, com as suas mon(s)tras, comem as infâncias das crianças, dos papás e dos avós''» Este «brincar» é igualmente teorizado por Maria Assunção Folque na apresentação: «Quero realçar que o lúdico, o brincar, não devem ser vistos apenas como processos naturais de quem ainda é criança mas antes, como capacidade humana sofisticada, em que este processo de construção-desconstrução-construção implica conhecer as regras para as poder perverter». Todo um programa para as sociedades que se exigem mais felizes ou que ainda ligadas intimamente à Natureza, onde ainda se sente «o riso que vem das entranhas da terra» como registou o antropólogo Tobias Schneebaum em «Onde os Espíritos Vivem» (Antígona, 1991) quando esteve na Nova Guiné. Estela Rodrigues, talvez por isso, não se limitou a um livro de pedagogia em sentido estrito, mas acrescentou-lhe uma aura poética e de intervenção político-social que lhe está indissociável e que beneficia claramente a obra.
Para além de tudo (e do pouco foi aqui dito), não percam o Capítulo 8 «Experimentos Poéticos e saberes partilhados» que se apresenta com guiões de exploração pedagógica, experiências, pormenores textuais, ilustrações e fotografias do trabalho no terreno que Estela Rodrigues desenvolveu com as crianças a partir dos poemas visuais. As recriações que vemos são autênticas maravilhas feitas por crianças entre, repete-se, os 4 e os 6 anos e os diálogos que se estabelecem entre a educadora e aluno/criador, ou recriador, são uma lição para o leitor, que sendo complexa está bem longe de ser majestática. Sei porque faço esta afirmação. Na mesma carta de Salette Tavares a Ana Hatherly já referida atrás e evidenciada por Rui Torres. Numa vivita de estudo a uma exposição de Alberto Carneiro na Galeria Quadrum, em 1979, Salette Tavares lembrou:
«(...) Aconteceu mostrar eu episodicamente uma exposição a crianças com cerca de seis anos. Fui várias vezes interrompida pelas duas professoras que as acompanhavam. Achavam tudo difícil para crianças daquela idade. Eu disse: - Isto é uma espiral e uma espiral é... Não me deixaram acabar de dizer, só acabei o gesto. Ora espiral é uma palavra linda, uma criança ainda mais pequenina do que aquelas pode saber o que é uma espiral porque já deve saber o que é um caracol. As crianças percebem muito bem a exposição de Alberto Carneiro. Quem não percebeu mesmo nada foram as professoras, era ri al mente muito difícil.»
«Pensar a Imagem, Olhar o Texto», de Estela Rodrigues, não se conforma com o estabelecido, antes questiona, subverte, ensina. Pela imagem, pelo texto, por anagramas que convocam a inteligência, a dedução, a comparação ou a indução. Até mesmo o nada. Seja. Mas creio que nenhum educador pode prescindir deste livro.