Relógio D'Água, Julho de 2023, 156 pp
Não é a primeira vez que escrevo sobre Ana Teresa Pereira, nem será certamente a última. A atracção do seu mundo particular, arrisco-me a dizer, é uma constante para um leitor que saiba conjugar o fantástico, o conto breve, embora este seja uma estrutura de um romance com capítulos religados entre si, como é o caso de «As Personagens», e o mistério que envolve toda a trama de um encontro fortuito (ou preparado antecipadamente?) entre quatro pessoas que se encontram numa noite de tempestade, nebulosa, fria e que se refugiam numa casa cinzenta, em contraste com uma fogueira acolhedora. Contraste e negação que se encontram em permanência no livro. A partir daí conseguimos vislumbrar as características psicológicas e o erotismo suave e emergente de duas mulheres e dois homens que tentam fugir ao imposto pelas normas sociais em forma de guião cinematográfico que, ao que se julga, é abandonado. Considero a necessidade de «entrar» neste conto tão estranho, como belo, conhecendo antecipadamente os Nocturnos de Chopin (serão os de Maria João Pires em particular?), as névoas constantes das charnecas de Conan Doyle ou alguns dos filmes de Hitchcock. Inquietante? Claro que o é, e uma história de Ana Teresa Pereira remete-nos para o desconforto e dúvida, através de uma linguagem depurada e diálogos credíveis. Sem querer revelar muito deste primeiro conto, não há uma só casa, mas uma outra dentro dela. Mas a possibilidade que Ana Teresa Pereira nos apresenta a meio do conto e pela voz de Diana (talvez a personagem central, mas que desaparece nos capítulos seguintes) é verdadeiramente inquietante: «-Talvez o mundo interior seja formado por pousadas, com dois lados iguais, rodeadas pelo nevoeiro, isoladas umas das outras...». Pousadas, labirintos, quartos aparentemente inabitados somos todos nós.
«Talvez...talvez ainda haja um lugar para onde ir.» (pág.31)
Neste livro de Ana Teresa Pereira coexistem labirintos físicos e psicológicos que permanecem em cada um de nós e na relação com os outros; são as máscaras (personas) que utilizamos quer na leitura de um livro, quer no escapismo a que nos propomos nas diversas personagens de um filme:
«Ela gostava por vezes de ler um livro como quem faz amor., excluindo o pensamento, sem o pensar, quase não o compreendendo. Ler um livro apenas com o corpo. Sentir prazer físico ao ver um filme, ao ver a chuva caindo em latas velhas, sentir vontade de gemer alto. Seria ele capaz dessa forma de erotismo?» (pág.58).
Sabemos que assim é na realidade vivida, mesmo que a irrealidade se imponha como as névoas, a chuva ininterrupta ou as tempestades constantes em toda a acção do livro. É esse o perímetro, a paisagem, que nos leva aos labirintos de nós próprios, alguns sem saída possível como sejam os jogos de sedução e de crueldade entre os homens e mulheres que povoam as narrativas soltas de «As Personagens». Essa crueldade que nos é mostrada não é feita de sangue, mas de ímpetos e aproximações em que as palavras têm um papel fundamental. Estas, cortam como facas:
«Quando as palavras vêm cheias de fantasmas, elas metem medo. Quando as palavras abrem alçapões de subterrâneos repletos de fantasmas, quando escrever é ver-se ao espelho e não gostar...as palavras metem medo. Quando se aprendeu a ver no fundo das palavras o que elas escondem, escrever já não pode ser um acto inocente.
Escrever nunca é inocente.» (pág.52)
E quando esses labirintos a que nos atrevemos a entrar, carregados de erotismo e crueldade, são construídos por altas muralhas a que não vemos a percepção do fim, em nós ou nos outros, nos que amamos, Ana Teresa Pereira atira-nos com a violência inerente às personagens que povoam o livro com um «Rosebud», síntese possível de uma vida plasmada, a preto e branco, em Citizen Kane.
«- É um mundo estranho, o da minha imaginação. Por vezes parece-me que vivo duas vidas, e é terrível passar de uma para a outra. Quando deixo a caneta e venho para fora, sinto-me perdida durante muito tempo. É...uma sensação de irrealidade total.» (pág.105)
Qualquer leitor que leia os livros de Ana Teresa Pereira, intui (a intuição é um pressentimento da verdade, como é referido algures no livro), porque sim, que ela é extremamente genuína, verdadeira, o que a transforma numa grande escritora. Deixa-nos este livro com uma doce inquietação.