Mas «Os Anos» de Annie Ernaux é um livro de memórias, por vezes duras, outras de verdadeira euforia, mas com uma preocupação central que é demonstrada pela epígrafe de Tchekov que escolheu:
« - Sim. Seremos esquecidos. É assim a vida, nada a fazer. O que hoje nos parece importante, sério, cheio de consequências, pois bem, um dia vai cair no esquecimento, vai deixar de ter importância. E o que é curioso é que não podemos saber hoje, o que, um dia, vai ser considerado bom e importante ou medíocre e ridículo. (...) Até pode acontecer que esta vida de agora, que tanto defendemos como nossa, venha um dia a ser considerado estranha, desconfortável, imbecil, não seja suficientemente inocente e, quem sabe, seja até condenável.»
E é este centro de um «diário» de 20 anos que a autora desfila os acontecimentos que a marcaram mais negativa ou positivamente na sua vida. Mas isso pouco interessa. A libertação que constituiu para a mulher a invenção da pílula, que permitiu a esta «comportar-se sexualmente como um homem» sem o perigo da gravidez indesejada, a despenalização do aborto, as carreiras académicas que abraçaram, a possibilidade do divórcio e do recomeço são etapas que descreve com a nostalgia de quem passou pelo Maio de 68 já mais velha que os estudantes barricados no Quartier Latin e na Sorbonne. Previu e aceitou a libertação que residiu nas revoltas quer dos estudantes, quer dos trabalhadores em greve geral. Mas também o tédio das sucessivas eleições e traições da maioria dos políticos socialistas e o quase desaparecimento do PCF. Claramente da esquerda socialista, antirracista, anti Le Pen, destaca o consumo desenfreado como um mal que corrói lentamente a Europa e já não só a França. Acusa os media de induzir ao esquecimento pela avalanche de «notícias» que substituem rapidamente as verdadeiras causas. Causas essas que podem ser perigosas para os governos e que criam a anomia social.
Durante muito tempo professora de liceu simpatizava e, simultaneamente, desconfiava dos jovens que os via cada vez mais consumistas e alienados pelo imediato. Entediavam-se, formavam «turmas desumanas» e quando se manifestavam na rua como em 95, logo que parte das suas reivindicações eram aceites pelos governos, recolhiam às aulas. Via a aproximação da reforma, destruindo apontamentos e livros que antes serviam para preparar aulas e o medo de perder gradualmente a memória foi decisiva para a escrita deste livro. Portanto, quem o ler, sabe que os momentos que ela analisa são os mesmos por que passámos, principalmente a partir dos anos 70, quando atingimos a liberdade em Portugal. A identificação torna-se assim uma atrativo simpático deste «Os Anos» que termina significativamente com um «Salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar». O círculo então fechou-se.
Livros do Brasil/Porto Ed.
1ª edição em França - 2008. Em Portugal - 2020
Tradução de Maria Etelvina Santos
António Luís Catarino