quinta-feira, fevereiro 02, 2023

«Os Anos», Annie Ernaux

 


Tinha lido «O Acontecimento» e visto o filme homónimo. Agora apeguei-me a este «Os Anos» de Annie Ernaux que, antes destes dois livros, não conhecia. Ernaux inicia o seu livro com a frase «Todas as imagens irão desaparecer» e o fio cronológico que tece é uma tentativa conseguida de desbravar as memórias de uma França em prosperidade económica do pós-guerra, mas com feridas por sarar entre gerações. Nascida em plena II Guerra Mundial, em 1940, lembra-se da morte de Estaline que marcou os resistentes franceses contra o nazismo e os comunistas de um PCF fortíssimo. A liberdade política da democracia representativa que se instalou na Europa Ocidental, excetuando a Grécia, Espanha e Portugal (não refere o nosso país), não tinha paralelo com a moral ainda muito influenciada pela Igreja e que perpassava na moral repressiva vigente e na separação dos sexos quer nos liceus, quer nas universidades. Os pais dos jovens exigiam o mesmo comportamento que eles tiveram com os avós, sem perceberem que os tempos e a memória se esvaem na cadência acelerada do «progresso». Se nos lembrarmos do livro de Pascal Quignard «L'Occupation Amèricaine» , já aqui mencionado numa ficha de leitura, perceberemos que os filhos não queriam falar nem da guerra, nem das senhas de racionamento, nem da heroica resistência, ou do esfíngico De Gaulle. Queriam mais e a liberdade era para eles o futuro desenhado ainda pelo comunismo e paradoxalmente pelo jazz, jeans, igualdade de género e prazer sexual. Como nos futuristas viam na velocidade das Vespas, ou no conforto de um banco traseiro de um Citroën ou de um Renault uma possibilidade infinita de felicidade.

Mas «Os Anos» de Annie Ernaux é um livro de memórias, por vezes duras, outras de verdadeira euforia, mas com uma preocupação central que é demonstrada pela epígrafe de Tchekov que escolheu:

« - Sim. Seremos esquecidos. É assim a vida, nada a fazer. O que hoje nos parece importante, sério, cheio de consequências, pois bem, um dia vai cair no esquecimento, vai deixar de ter importância. E o que é curioso é que não podemos saber hoje, o que, um dia, vai ser considerado bom e importante ou medíocre e ridículo. (...) Até pode acontecer que esta vida de agora, que tanto defendemos como nossa, venha um dia a ser considerado estranha, desconfortável, imbecil, não seja suficientemente inocente e, quem sabe, seja até condenável.»

E é este centro de um «diário» de 20 anos que a autora desfila os acontecimentos que a marcaram mais negativa ou positivamente na sua vida. Mas isso pouco interessa. A libertação que constituiu para a mulher a invenção da pílula, que permitiu a esta «comportar-se sexualmente como um homem» sem o perigo da gravidez indesejada, a despenalização do aborto, as carreiras académicas que abraçaram, a possibilidade do divórcio e do recomeço são etapas que descreve com a nostalgia de quem passou pelo Maio de 68 já mais velha que os estudantes barricados no Quartier Latin e na Sorbonne. Previu e aceitou a libertação que residiu nas revoltas quer dos estudantes, quer dos trabalhadores em greve geral. Mas também o tédio das sucessivas eleições e traições da maioria dos políticos socialistas e o quase desaparecimento do PCF. Claramente da esquerda socialista, antirracista, anti Le Pen, destaca o consumo desenfreado como um mal que corrói lentamente a Europa e já não só a França. Acusa os media de induzir ao esquecimento pela avalanche de «notícias» que substituem rapidamente as verdadeiras causas. Causas essas que podem ser perigosas para os governos e que criam a anomia social.

Durante muito tempo professora de liceu simpatizava e, simultaneamente, desconfiava dos jovens que os via cada vez mais consumistas e alienados pelo imediato. Entediavam-se, formavam «turmas desumanas» e quando se manifestavam na rua como em 95, logo que parte das suas reivindicações eram aceites pelos governos, recolhiam às aulas. Via a aproximação da reforma, destruindo apontamentos e livros que antes serviam para preparar aulas e o medo de perder gradualmente a memória foi decisiva para a escrita deste livro. Portanto, quem o ler, sabe que os momentos que ela analisa são os mesmos por que passámos, principalmente a partir dos anos 70, quando atingimos a liberdade em Portugal. A identificação torna-se assim uma atrativo simpático deste «Os Anos» que termina significativamente com um «Salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar». O círculo então fechou-se.

Livros do Brasil/Porto Ed.

1ª edição em França - 2008. Em Portugal - 2020

Tradução de Maria Etelvina Santos

António Luís Catarino