quinta-feira, dezembro 22, 2022

«Mortos ou Coisa Melhor», de Violeta Hernando

 

«Mortos ou Coisa Melhor», foi escrito por uma miúda de 14 anos em 1996. A Antígona publicou-o então do castelhano e foi traduzido por Júlio Henriques. Hoje, a miúda terá 40 anos e não sei mais nada dela, a não ser que trabalha numa editora, ilustra e desenha gerindo cursos online. Continua bonita aos 40, asseguro-vos.
A leitura do livro abalou-me bastante. Na altura encontrava-me como ainda jovem professor em Lisboa, na Margem Sul e no distrito de Setúbal e foi uma bomba lê-lo, como já disse atrás. O cavaquismo tinha acabado, seguindo-se o pântano de Guterres e a revolta estudantil no secundário mantinha-se, digamos que em proporção à falta de perspetivas e expetativas de vida. A saída mais comum da pasmaceira da vida nos subúrbios dos meus alunos/as era o rock e as drogas. A cerveja igualmente. Às segundas-feiras entravam nas salas brancos, com ressacas monumentais e não era raro pedirem-me para sair da sala à pressa para se meterem nas casas de banho a vomitar. O livro de Violeta Hernando saiu nessa altura e li-o de uma assentada. Creio tê-lo compreendido em cada linha, permanecendo focado em muitos dos meus alunos e alunas. Querendo saber que cultura pós-punk e pós-new wave, que eu tinha passado com entusiasmo mesmo acreditando no seu «no future», era aquela. «Mortos ou Coisa Melhor» deu-me essa perspetiva, embora Violeta Hernando, com uma mestria literária surpreendente e precoce, tivesse levado a sua experiência em Barcelona para o palco dos Estados Unidos. O vazio demonstrado aos que a liam, as drogas, mesmo as mais duras, os ácidos, as bebidas brancas, os roubos e as armas, a violência latente em cada linha de escrita era por si própria atirada à nossa cara. Com uma altivez impressionante e com um conhecimento literário admirável apontava-nos o dedo como sendo nós os culpados de um tédio infinito, mesmo que o tivéssemos sentido como ela. 
Admiradora de Courtney Love, Iggy Pop e de Sam Shepard termina o seu livro com o «The End» dos Doors. Antes disso, oferece-nos o poema de Cristina Rosenvige:

Julga este idiota que pode tratar-me por boneca,
sou capaz de jogar pinguepongue na sua cabeça oca,
vou subir à roda grande para dizer adeus,
antes de nos vermos mortos ou coisa melhor
antes de ambos nos vermos mortos ou coisa melhor,
antes de ambos nos vermos mortos...
ou coisa melhor...

Por uma questão de respeito para com uma turma em que debatemos o livro, após um amigo de um deles ter morrido a fazer mosh do 1º balcão para a plateia num concerto de uma banda heavy metal, não vos direi a reação deles. Mas sei que o livro andou de mão em mão. 

Agora bem perto da reforma, olho para trás e vejo-os, a essas turmas, e provavelmente, neste momento, com os seus 40 anos, a viverem num outro tédio, num outro espelho, talvez tatuados/as com as suas lembranças na pele. Alguns não sei se sobreviveram. Esses são os que nos fazem lembrar que não ultrapassámos tédio nenhum, muito menos revolucionário. Não tenho tatuagens visíveis no corpo. Nunca as fiz, o que não quer dizer que não as tenha comigo.