segunda-feira, dezembro 12, 2022

«Betão - Arma de construção maciça do capitalismo», Anselm Jappe


Nada como numa época levezinha, de natal estendido, mergulhar numa leitura como «Betão» do alemão Anselm Jappe, fundador com Robert Kurz e Norbert Trenkle, entre outros, do Grupo Krisis que se destacou pela superação teórica dos situacionistas e por um novo impulso, às teorias marxistas do valor, do trabalho como alienação e ao significado do fetichismo da mercadoria.

Anselm Jappe não separa o betão, mais concretamente o betão armado, do capitalismo. A partir do desastre da ponte Morandi de Génova em 2018, que matou 49 pessoas, produz uma síntese teórica baseada na ligação íntima deste material extrativo com a noção de plasticidade do capitalismo moldado a tudo o que existe no planeta, deixando as consequências do lucro desmedido para as próximas gerações humanas, se as houver. Melhor metáfora não há para o betão: moldável, líquido, omnipresente, e supostamente igualitário. Tal como o capitalismo.

Inicialmente, ainda no século XIX, o betão foi visto como uma libertação para os oprimidos ao ponto de o ligarem ao comunismo. Em parte com razão: o taylorismo (de que Lenine e Trotsky conheciam bem os princípios) e a emulação socialista da época estalinista aplicava-se perfeitamente ao betão. O ritmo fordista de trabalho na passadeira rolante, repetitivo, estupidificante, inumano porque separador do outro, disciplinador porque facilmente vigiado, era a outra face da aplicação do betão armado nas ruas e nas casas onde precisava de ruas largas e retilíneas onde se pudessem deslocar rapidamente um outro símbolo nascente do capital: o automóvel. O betão aplicava-se na íntegra aos pressupostos falsamente igualitários da economia nascente dos «30 gloriosos» pós-guerra. Ainda antes dessa época áurea do betão para todos, para ricos ou pobres, os funcionalistas da Bauhaus com Le Corbusier à cabeça legitimavam o betão e o vidro (e muito o plástico para o design) como os materiais do futuro, onde quer que fosse. Na África quente e tropical, como na Sibéria ou países nórdicos. A climatização forçada viria depois, com as consequências que se sabem! Barato, porque feito em cimento, areia, saibro, cacos e muita água, nem por isso criou verdadeiros atentados ecológicos obrigando a verdadeiras máfias de extração de areia e não só em Nápoles da Camorra. Onde houvesse areia: nos rios, lagos, lagoas, ribeiros... ao ponto de terem desaparecido na Indonésia três ilhas, ou dando origem a desastres arrasadores como o do Katrina, no Louisiana (perto de 20 mil mortos) cujo betão não aguentou a pressão das águas, ou ainda no Japão utilizado como travão a tsunamis, embora sem sucesso; aliás, com a possibilidade de aumentarem os muros à beira-mar para 12 metros de altura deixando as populações impossibilitadas de o ver!

Sobre a nocividade do betão armado pode enumerar-se quatro fatores principais que não se esgotam neste rol: a nocividade do seu pó para a saúde humana, tal como a obrigatoriedade quase absoluta de climatização interior, as consequências da extração maciça de areia e cascalho sobre os meios naturais e habitantes, o consumo exorbitante de energia que provoca e as emissões de CO2 no momento da «cozedura» do betão e a esterilização dos solos. Mas existe também a obsolescência (alma do lucro e do valor da mercadoria) que o betão produz pela sua pouca durabilidade. 

Portanto o betão armado é uma falácia que não aguenta três gerações sem graves problemas de sustentação, qualquer que seja a sua largura ou técnicas de reforço, não impede que o ferro e aço interiores ao concreto se oxide, inchando e rachando a massa de betão que os envolvem. É uma técnica efémera, líquida, que permite o sonho futurista do arquiteto italiano Sant'Elia, amigo de Marinetti e Mussolini que afirmava que uma cidade deveria ser feita com materiais que não resistissem a uma geração. Por muito que nos admiremos Le Corbusier (que colaborou com Pétain, mas que estranhamente foi abraçado pela esquerda no pós-guerra!), De Stijl ou o mais novato Rem Koolas (que o conhecemos bem na incómoda Casa da Música, no Porto) seguiram os passos desta arquitetura líquida em betão armado. Fritz Lang e Ridley Scott mostraram cidades do futuro nos seus filmes baseados nesta teoria em que a rua, simplesmente desaparece ou torna-se intransitável para as pessoas apertadas sobre si próprias com dificuldade de locomoção livre. Talvez marchando ordenadamente...

Foi um passo rápido para o chamado «brutalismo», mas já lá vamos. Fiquemo-nos agora pela ordem de aproximação fascista que tem o funcionalismo como base e nas palavras de Roger-Pol Droit, em 2015, no seu ensaio «O Funcionalismo hoje» e citado no livro por Anselm Jappe: «O seu [de Corbusier, de 1937] objetivo maior: ''Criar uma raça sólida e bela, sã''. A sua obsessão: ''O apuramento das grandes cidades'' a edificação de uma sociedade ordenada, viril, higiénica, racional.'' Os seus conselhos: ''Classifiquem-se as populações urbanas, triem-se, repilam-se os que são inúteis na cidade''. (...) O culto do ângulo reto, o ódio às curvas, à desordem, a rejeição dos sedimentos do acaso e da história, o gosto exacerbado pelo fabrico em série e a estandardização constituem, no entanto, ideologia posta em forma. a cidade deve tornar-se uma máquina de produzir um homem novo, condicionado, controlado 24 horas por dia.» (pág.42). O betão é essencial a esta ideologia totalitária funcionalista de Le Corbusier e seus acólitos e a casa torna-se uma jaula acessível a todos, daí o seu carácter supostamente igualitário porque os dominantes geralmente saem desta selva.

Vamos agora ao «brutalismo». Este «estilo» que não arte porque a liquidez do betão permite todas as possibilidades visuais, Daí, o próprio Anselm Jappe ter compreendido tarde que o termo não tem a carga pejorativa que lhe dão os adversários, mas sim de betão que se chama mesmo de «brutal» e que se caracteriza por estruturas em cubo nas quais o betão surge nu e sem decoração. Assim, edifícios públicos, universidades, centros culturais, teatros, tornaram-se a imagem deste betão «brutal», literalmente concreto (palavra com dois sentidos no português do Brasil e no francês). Por muito que nos sintamos mal dentro dos edifícios e já nem falo no olhar de «fora», o pós-modernismo impôs este estilo como forma de ser efémero que remonta aos futuristas dos anos 20. A «Cidade Líquida» que nos desmonta Baumann e tem dado origem a imensas confusões de conceito. Mas também nos países socialistas o betão teve uma aceitação plena principalmente a partir de Krutchev, dando origem à expressão metafórica de «Concrete? It's Communist!». Mesmo as ruínas em betão, e há imensas pelo mundo fora sem que se saiba muito bem como o reciclar, já que os custos são maiores do que a extração e fabrico em moldes, são uma ode ao horror moderno o que não acontece com as ruínas de edifícios ou estruturas feitos com materiais locais. Mas esse horror cria uma espécie de alegria de fotógrafos que se dedicam sobretudo a fotografar edifícios brutalistas inacabados ou em ruínas e encontramos na Internet páginas inteiras de «mostras» e exposições de casas que ninguém quer, sequer, e por impossibilidade técnica de as reconstruir. 

De qualquer forma, devemos aos letristas e aos situacionistas, já na década de 50 e inícios de 60, a denúncia do funcionalismo de Corbusier e do brutalismo, criando utopias concretas pelo jogo da deriva e da desordem poética, na possibilidade de vida e do jogo permanente entre os seus habitantes. Para isso, seria preciso mudar de vida. Toda uma epifania. Cada vez mais possível porque hoje a construção de cidades obedece também, e segundo o autor, «ao ódio, pertencente à modernidade, a tudo o que é incontrolável, orgânico, labiríntico, fragmentado, imprevisível. (pág.123)»

Editora, Antígona
Tradutor: Miguel Serras Pereira