quarta-feira, setembro 09, 2020

«No Labirinto de Outubro - Cem Anos de Revolução e Dissidência», de Rui Bebiano

 No Labirinto De Outubro- Cem Anos De Revolução E Dissidência - eBook - WOOK

Quem pensa que sabe tudo sobre a Revolução de Outubro de 1917, desengane-se. Este livro de Rui Bebiano dá-nos pistas fundamentais para um melhor conhecimento sobre um acontecimento fulcral da História e não só do século XX. E tão mal conhecido, correndo até o risco de ser ostracizado e subvalorizado nos bancos da escola. Perante algum desânimo do autor, assente no desconhecimento cada vez mais confrangedor que os alunos demonstram sobre a Revolução Russa, quer a de Fevereiro, quer a de Outubro, resta dizer que a coisa já vem detrás respeitante aos curricula do ensino secundário. Sendo um item estruturante das aprendizagens essenciais do 9º e do 12º ano, bastas vezes conteúdo tratado em exames nacionais do último ano de escolaridade, é, contudo, tratado de modo rápido e sumaríssimo no básico e no secundário. Tal como, aproveito para dizê-lo, os movimentos artísticos modernos e contemporâneos.

Neste «Labirintos de Outubro – cem anos de revolução e dissidência» o autor avisa-nos que este labirinto não deve ser o de Dédalo em Creta quase impossível de resolver (menos para Ariadne, digo eu); para Rui Bebiano um labirinto humano é «(…) um ingresso e uma saída, que podem estar ligadas a uma mesma porta ou a duas diferentes, pois aquilo que conta neste tipo de arquitectura não é a forma de a ela se aceder, mas sim a complexidade máxima do trajecto interior que comporta.»(pág. 328). Sejamos pois Ariadne e deixemos por lá o fio condutor. E esta será a única citação que utilizo aqui sem correr o risco de descontextualizar a ligação (esta querida palavra para as esquerdas) que o autor faz de um modo irrepreensível. De facto, o livro tem uma consistência interna e mostra um poder de síntese do historiador que devemos saudar. Os «mil marxismos», expressão usada por André Tosel, está em todas as páginas do livro e vemo-nos confrontados com a enorme variedade política em que o conflito e a hostilidade estiveram sempre presentes com diversas facções a digladiarem-se entre si, mesmo trazendo consigo o último sacrifício de seres humanos. E não foram poucas as vezes em que isso aconteceu. Mas, aqui, o historiador não cai na ratoeira que o anticomunismo armou, nomeadamente o de se analisar as consequências sem analisar as múltiplas causas que deram origem à revolução. Assim, é-nos exposto de um modo notável a consciência transformadora da Revolução de Outubro de 1917 como se fosse um livro aberto em que todos os actores foram convidados a apresentar as suas convicções e caminhos a percorrer.

O entusiasmo perante o significado da Revolução de 17 na Rússia foi mundial. E citando Enzo Traverso, Rui Bebiano é claro quando afirma que não devemos esquecer a vontade matricial desta revolução, para alguns historiadores o corolário lógico da Revolução Francesa de 1789, apostada em mudar a sociedade e dar aos explorados uma vida melhor, em detrimento do enumerar os milhões de sacrificados por diatribes burocráticas e fanáticas. O comunismo é, será sempre, uma luta pelos «impossíveis», como disse Sousa Dias. E esse impossível esteve desenhado nos primeiros anos de 1917 até 1928, dando ao comunismo soviético uma real possibilidade de libertação humana. O desejo, a festa, a realização e a luta por uma outra produção, não aviltada pelo trabalho assalariado e muito menos pelo trabalho emulativo, estiveram bem presentes nos inícios da Revolução. Com a figura de Lenine sempre presente (e não é nenhum santo como é demonstrado), mas acompanhado por bolcheviques como Trostsky, Bukarine, Zinoviev, Kamenev, Radek, Alexandra Kollontai, personalidades que tiveram percursos pessoais e políticos e que, na estratégia e na táctica, por vezes chocaram com a linha adoptada pelo partido que então tomava o poder na Rússia. O «caso» de Estaline não é, para Rui Bebiano, a continuidade lógica do processo revolucionário configurado totalmente pela tomada do poder em 1928 e mais tarde pela brutal repressão de meados dos anos 30 em que os seus antigos aliados se tornaram o inimigo a abater. Não nos esquecemos, e o livro lembra bem, que as primeiras vítimas foram comunistas e com eles os socialistas-revolucionários, mencheviques, anarquistas, trotsquistas, membros da Oposição Operária, gente sem partido, cada qual com o seu programa diferenciado para a Revolução.

Quando se fala da Revolução de Outubro de 1917, fala-se igualmente de alegria. De facto, até 1928, dançou-se em Moscovo e Leninegrado, nas fábricas e nos campos, nas escolas e nos quartéis. E é desta Revolução que traz consigo as diversas estradas diferentes no campo da esquerda, desde a social-democracia até à ultra-esquerda que nos faz gostar imenso deste livro (embora tenha alguma reticência em atribuir a Estaline o epíteto de ultra-esquerdista, seguindo a taxonomia de Richard Gombin). Não que Rui Bebiano evite falar das mortes, dos processos fabricados ou do Gulag. Antes pelo contrário; vimos, em Labirintos de Outubro, que são utilizadas novas fontes históricas, recentemente trazidas à luz nos arquivos russos, da verdadeira demência persecutória, a estalinista mas não só, que enviou para a morte, tortura e campos de trabalho, milhões de homens e mulheres que discordavam do caminho que a Revolução levava. O que me leva a exaltar a seriedade deste livro é, repita-se, exactamente a linha histórica levada a cabo para não esquecer o motivo da Revolução, ou seja, a matriz que lhe deu corpo e que a levou à vitória, à sua realização posterior, ao seu aviltamento burocrático e ao desmembramento de 1989-91: a revolução dos produtores contra uma sociedade intrinsecamente injusta e baseada na exploração do homem pelo homem. Não convém esquecer, na ocasião e hoje talvez mais premente que nunca, a necessidade de construir novos «impossíveis», mas com as lições do passado. Para os que não as têm presentes, um aviso sério do historiador: a História não perdoará a quem repetir os erros cometidos.

Seria, todavia, fastidioso estar aqui a citar o índice onomástico das rupturas e dissidências já nossas conhecidas e familiares, visto que estamos a falar no domínio da esquerda marxista ou marxiana (para os que pensam que Marx nunca foi marxista). Gostaria que falasse mais na «minha» dissidência? Claro que sim. E os «longos anos sessenta» foram riquíssimos nesses cortes. Mas, para isso, esta síntese notável de Rui Bebiano dá-nos um caminho seguro de referências bibliográficas. Depois, bom, será com cada leitor, mas que se nota um equilíbrio e um prazer visíveis a cada leitura e a cada capítulo (com mais força para o final, diga-se) dessa enorme paleta de cores que são as esquerdas, é uma verdade que dificilmente será contestada.

O conhecimento e a interiorização histórica das esquerdas fazem-se também pela leitura deste No Labirinto de Outubro. Que lastro nos ficará na construção desses «impossíveis» bem desenhados por Rui Bebiano é uma demanda que será sempre individual, mas com a certeza razoável de que as «novas subjectividades» serão sempre colectivas.

António Luís Catarino

Coimbra, 9 de Setembro de 2020