segunda-feira, agosto 31, 2020

«Epítome de Pecados e Tentações», de Mário de Carvalho

Epítome de pecados e tentações - Livro - WOOK

Há poucos escritores assim. E talvez não erre se disser que Mário de Carvalho será o único escritor que conhece como ninguém a nossa classe média criada com Cavaco Silva lá pelos anos 80, da Bolsa e toda caganças, possuidores de Jaguares, Rolex, plenos de Joana Vasconcelos e José Rodrigues dos Santos, visto que também são dados às artes. Elas são mais cultas e sensíveis que eles, mas também cruéis, estilo «não estar apaixonada mais de 12 horas seguidas». E será necessário ter acompanhado a escrita dele para notar o seu poder de síntese e de observação que, em poucas linhas, nos leva a perceber as características físicas e psicológicas das personagens. A arte do conto não é fácil de fazer, suponho, mas, quando é conseguida, lê-se com um interesse crescente. Foi o que aconteceu comigo: comecei a ler «Epítome de Pecados e Tentações» ainda na livraria e acabei-o no mesmo dia em casa. Como as mulheres que povoam os contos a engatar homens desajeitados, machos latinos, imberbes ou hesitantes. Foi tiro e queda! Quem, senão Mário de Carvalho, pode escrever assim uma cena de amor «(…)O ror de tempo que ele demorava, festas, festinhas, mais aqui, mais além, agora o do lado direito, agora o do lado esquerdo, depois os dois, agora mais abaixo…Não era inteiramente desagradável, mas vinha muito cheio de lances, confusões e cócegas. O meu homem do matrimónio avia esta coisa despachadamente, em força, acima, a fundo, mas este era todo de caganifâncias. Chupava, soprava, lambia, intrometia mão, nariz, dedos… Fazia-me impressão. Tive que lhe dar um par de sapatadas. Se era para entrar, que entrasse como Deus manda, usando o meio competente, eu esperava e consentia. Agora atravessamentos pianistas… era só sentir corpos estranhos onde não deviam estar. Fazia-me impressão. Arredei-lhe a mão, com força. E ele a dar-lhe. Nova berlaitada minha.(…)» e as sapatadas continuam pelo livro todo em cima de homens cheios de convicção, mas algo rebaixados com as mulheres de iniciativa confirmada. O que os deixa­ em baixo.

Mas voltemos à burguesia tão cara à observação atenta de Mário de Carvalho. Notem esta introdução à caracterização de um certo auditor, uma personagem ímpar do livro: «Descendente de campónios, aquela sagacidade instalada, a inteligência de lidar com a diversidade, o domínio sereno das nomenclaturas, a compreensão dos modismos, o complexo lastro casuístico causavam nos colegas uma interrogação atónita. Eles, ao fim e ao cabo, eram filhos de pequeno-burgueses urbanos, não sabiam o nome dum pássaro, dum insecto, duma árvore, mas tinham sido acostumados, desde muito novos, a dares e tomares, com as camadas sociais intermédias. Palavras, gestos, atitudes, pausas.» O mote e o ambiente estão dados e a entrada triunfal do auditor acontece agora perante a submissão do resto dos colegas. Agora o homem poderá falar da mulher como «minha esposa» e usar advérbios como «tocantemente» e «talqualmente». Digam-me que nunca viram pessoas assim. Eu, pela minha parte, encontro-os quase todos os dias. São uma chusma de gente em cada repartição, instituição ou acomodação política.

Um livro a ler com a urgência necessária, mesmo que para isso tenhamos de nos interrogar a cada linha: «’pera aí! Eu já fiz isto?», «mas este sou eu?», ou pior um pouco «já tratei alguém por você? Alguém me tratou por você?». É que eu sou doutor. Se possível com um largo e complexo lastro casuístico! Impagável, este livro.

António Luís Catarino

Coimbra, 31 de Agosto de 2020