segunda-feira, julho 20, 2020

«Le Lambeau», de Phillipe Lançon


Le Lambeau" : le récit dur et poignant de Philippe Lançon sur l ...
Capa de «Le Lambeau» e o autor Philippe Lançon

A 7 de Janeiro de 2015, em Paris, dois verdadeiros imbecis, os irmãos Kouachi, entram na sede da Charlie Hebdo aos gritos de «Allah Akbar!» e assassinam doze pessoas ligadas à redação que estava reunida para preparar o próximo número do jornal. Entre elas, morrem Wolinski, Cabu, Charb, Elsa Cayat, Tignous e Honoré. Entre os feridos, cinco na totalidade, conta-se Philippe Lançon que escreve este livro que foi publicado pela Folio em 2018. Uma onda de indignação percorreu a Europa lançando a estranha palavra de ordem «Je suis Charlie».

Devo dizer que eu fui sempre Charlie, mas recusei-me, talvez por isso mesmo, a subscrever este estribilho que percorreu todas as redes sociais e paredes do país. Não que não me tivesse emocionado com a morte de desenhadores que eu aprendi a seguir e rir-me com eles. A morte de Wolinsky, por exemplo, foi muito sentida. A Câmara do Porto, cidade onde eu vivia na ocasião, fez-lhe uma enorme homenagem e tinha motivos: ele pertenceu, juntamente com Gémeo Luís que fez trabalhos excelentes para a Deriva Editores, ao júri do Porto Cartoon durante anos. Mas eu acompanhava-o desde sempre. Pelo menos a partir de 1976 eu comprava sempre a Charlie Mensuel e, intermitentemente, a Hebdo, juntamente com a revista Hara Kiri, Métal Hurlant ou Pilote. Fui sempre um apaixonado pela Banda Desenhada. Francesa, principalmente.

Phillipe Lançon, traça neste livro, toda a história desde o atentado onde foi seriamente ferido. Ficou sem maxilar inferior com uma bala de Kalashnikov. Traduziria «Le Lambeau» por «A Retalho» ou «O Pedaço» que foi o que lhe fizeram no hospital durante dois anos recompondo-lhe tecidos queimados, dentes que desapareceram, ossos retirados do perónio para o maxilar, titânio para juntar ao puzzle em que se tornou o maxilar. Ele conta-nos os delírios da morfina, as paragens respiratórias, as infecções constantes, o não poder beijar, beber um copo, a saliva a inundar-lhe as gazes à volta do rosto. O horror que ele conta não desejaria ao meu pior inimigo. Jornalista do Libération e da Charlie Hebdo fez reportagens de guerra como na Síria, no Iraque, no Líbano, na Palestina e, porque não dizê-lo, na Colômbia e no México dos cartéis de droga. Foi alvo de um grave ferimento de guerra, como disse o bombeiro que o resgatou do mar de sangue em que se tornou a sala da redacção, em Paris! A última crítica de livros que enviou para o Libération era sobre «Insubmissão» de Houllebecq o que não deixa de ser premonitório. Quem o leu (está editado em português) sabe do que falo. Poucos minutos antes do ataque, estavam a discutir se valeria a pena dar voz a um reaccionário nas páginas da Hebdo. O debate não chegou ao fim. Rajadas de metralhadora acabaram com a possibilidade de editar fosse o que fosse. No chão, cadáveres de desenhadores que conhecíamos bem, que nos rimos com eles que por vezes sentíamos que se estavam a expor demasiado como quando publicaram as imagens de Maomé de um desenhador dinamarquês alvo de uma fatwa, ou quando incendiaram em 2011 a sede do jornal. Eles não queriam saber. Charb dizia para Lançon que se fossem a dar importância às várias ameaças vindas de um leque largo do espectro político francês o jornal não sairia nunca. E, sabêmo-lo hoje, o jornal não respirava saúde económica reduzindo, semana a semana, as tiragens. Portanto, não deixa de ser paradoxal, que todos dissessem à uma «Je suis Charlie». E Lançon di-lo com todas as letras a hipocrisia de tal palavra de ordem. Não eram todos Charlie. E no momento da grande causa comum havia sempre quem dissesse «Eles puseram-se a jeito!» ou «Quando se brinca com a religião…».

A palavra a Phillipe Lançon: «A 7 de Janeiro de 2015, pelas 10:30, não havia muita gente em França para ser «Charlie». Os tempos mudaram e nós não podíamos fazer nada. O jornal só tinha importância para alguns fiéis, para os islamitas e para aquela espécie de indivíduos mais ou menos civilizados, variando entre jovens suburbanos que não liam, a amigos de longa data dos condenados da terra que prontamente o chamavam de racista. Nós sentimos a ascensão desta raiva primária, que transformava o combate social em espírito de intolerância. O ódio é uma bebedeira; as ameaças de morte, habituais; os mails de lixo, numerosos. Acontecia-me perguntar a um dono de um quiosque, geralmente árabe, que dizia não receber o jornal com uma tal expressão de raiva que não escondia a mentira. Sem se dar por isso, a atmosfera mudava. Tinha chegado um momento, sem dúvida a partir do incêndio criminoso de 2011, onde parei, sem deixar de sentir vergonha, de abrir Charlie Hebdo no metro».

A partir daqui foi a contagem decrescente até ao atentado, ao massacre. E Philippe Lançon explica bem o que sentiu por parte de alguma esquerda culpabilizante e defensora de uma moral e de uma ética onde não cabe o riso e a liberdade de expressão, já que, pela direita se sabia o que daí vinha. Portanto a barbárie, no caso, chegou viu e venceu e passados seis anos os factos estão aí para o provar. Quando se começa a culpar a vítima (como Lançon, jornalista, despreza esta palavra!) porque provocou o agressor tudo de sujo será possível. E foi o que aconteceu no caso de Charlie Hebdo.

António Luís Catarino
Coimbra, 20 de julho de 2020
Je Suis Charlie: O Jornalismo está de luto! - Pplware
A ironia e o sarcasmo sempre presente em Charlie Hebdo. E a liberdade de expressão também.