terça-feira, julho 21, 2020

«Eternidade», de Ferreira de Castro


LETRAS LUSAS: "Eternidade", de Ferreira de Castro - alma-lusa

«Eternidade», de Ferreira de Castro

Um tipo, quando tem 13 anos salta sobre um banco em direcção à estante dos pais e procura debalde um livro que lhe acalme as hormonas. Lá fica com Eça, Camilo, Brandão, Ferreira de Castro, Alves Redol, Soeiro, Gomes Ferreira. O Jorge Amado e Erico Veríssimo, também. Lê-os e esquece-os na voragem dos vinte e trinta na procura do novo que tudo ponha em causa e muito para «épater le bourgeois» que os há em cada família e não só. Por vezes, esquece-os e não volta a tocar neles. Agora, a memória reflexiva dos sessenta faz com eu regresse às leituras.

Pessoas há, e eu sou uma delas, que só dão conta das pérolas que lhes vêm às mãos muito depois. «Eternidade», de Ferreira de Castro é um exemplo desses. Nunca o tinha lido, embora existisse em casa dos meus pais, e adquiri-o num impulso porque o comecei a ler ainda na livraria. Logo que tirei a máscara e me desinfectei nunca mais o larguei. Por que razão não consigo ler de máscara ainda será um mistério que me assiste. Mas, num dia! Li-o num simples dia, coisa que não fazia há muito.

As personagens são românticas, como aliás é aí dito a certa altura. Ferreira de Castro não o é, e a estória muito menos. Não é realista ou neorrealista. Não cabe em rótulos. Um único que lhe cabe é que é extraordinário. Ou seja, muito para além do ordinário. Não é moralista ou decadentista. É cheio de vida. Contraditório e selvagem. Juvenal, engenheiro silvicultor é um homem apaixonado por uma mulher, Helena, que lhe morreu em Lisboa. Nunca percebemos se o seu amor é mesmo por ela se pela morte que a acompanha. Na viagem à sua cidade natal, o Funchal, vê-se enredado em desejos que passam por Renée, pelas putas de rua junto à Sé, por Elisabeth, casada com o industrial romeno e que se divorcia para o acompanhar para a deportação em Cabo Verde, na Ilha do Sal, castigo esse que abre a hipótese de um campo de concentração que, intuímos, se inaugurará mais tarde.

Estamos em 1933, ano da «legitimação» constitucional do Estado Novo e todas as oposições são possíveis ainda que de um modo gestacional. A ressaca da crise mundial de 1929 ainda se sente na queda das exportações e os preços e os salários sofrem baixas terríveis. A personagem principal vê-se envolto na burguesia salazarista madeirense de onde a família é oriunda e o contraste brutal de uma população que ainda permanece com os seus traços feudais, quer na situação de operários da indústria exportadora conserveira e vinícola que se apegam ainda às associações mutualistas (embora se manifestem já de bandeira vermelha), quer às bordadeiras (40 a 60 mil segundo o autor), ou aos camponeses das levadas que são explorados até à morte, mais que não seja pela tuberculose, loucura ou pela aguardente.

Juvenal muda de campo e adere aos mais pobres. Não lhe interessa viver assim. Adere através de uma manifestação de fome, violenta, em que se incendeiam algumas sedes de exportações de bordados. Pressente-se já a presença de comunistas organizados, doze anos depois da fundação do PCP. «Ser humano, só humano perante a dor infinita, era sentir-se complexo como um deus e insignificante como um grão de pó. Era ser tudo e ser nada – e sofrer, no seu egoísmo, a sensação de ser nada, nada, nada! Ninguém articulara ainda, entre tantos que sofreram o mesmo drama ao longo de milénios, a palavra consoladora. Ninguém! Ou se tinha uma utopia e se marchava agarrado a um velho bordão metafísico, ou a razão cambaleava por caminhos sem saída. E se a ansiedade duma certeza era maior, por chaga recente avivada, só se encontrava o silêncio universal e, entre a tribos, a submissão de quem se fatigara de tanto perscrutar». E Juvenal, pela caneta de Ferreira de Castro, coloca as culpas ao chicote salazarista e ao medo que a Igreja impõe às populações.

A eternidade aqui conta-se por milénios. Ferreira de Castro coloca Juvenal numa redoma de dúvida perante a capacidade do Homem em regenerar-se, em criar uma sociedade igualitária. Pelo menos em vida dele. E torna-o triste, cabisbaixo, quase desesperado, só não sendo indiferente para com a sorte dos subalternos. Aí ele age e paga com o ferimento, a prisão e a deportação onde se junta Elisabeth, vinda de Inglaterra, já divorciada e grávida de um filho que, segundo ele, talvez continue a luta. «A compreensão…A compreensão e os homens libertos de injustiças que sobre eles pesavam, das injustiças que ajudavam a manter viva e aderida a ganga inicial. Havia de existir um ponto convergente. Havia de existir ou havia de produzir-se, com o rodar dos tempos, a possibilidade duma conciliação entre todas as disparidades; uma conciliação mesmo nos pegos mais profundos, onde as incongruências da natureza se ocultavam melhor. Porque o homem não era só aquilo, não era só como ele o via nos seus momentos de desespero. O homem era, pela força do espírito, uma promoção sem limites, mesmo quando gastava milénios a ascender a um novo grau».

Este homem, Ferreira de Castro, vislumbrou esse grau e é um grande escritor. Que tivesse recusado ser proposto para Nobel, depois de ser reconhecido mundialmente e ser traduzido em 10 línguas, percebe-se agora porquê. Razão pela qual, se não tivermos cuidado, e geralmente nunca temos, ele vai ser esquecido dos mais jovens, tal como Brandão e Aquilino. Esperemos e lutemos por um novo grau, então.

António Luís Catarino
Coimbra, 21 de Julho de 2020.