quarta-feira, março 18, 2020

O abismo sem fundo da desumanidade. «À Beira do Abismo. A Europa 1914-1949», de Ian Kershaw


Após a leitura deste livro dou por mim a pensar que o julgamento de Nuremberga poderia ter ido mais longe e a desnazificação iniciada em 1945 terá sido um enorme logro, devido à emergência da Guerra Fria. «À Beira do Abismo. A Europa 1914-1949», de Ian Kershaw é um monumental documento histórico, com fontes bem sólidas notando-se que o autor teve acesso a processos desclassificados após o fim da I e II Guerra Mundiais. Para além disso, mostra-se imparcial, mas nunca para com os totalitarismos sabendo, neste jogo, equilibrar as diferenças de objetivos entre quem é atacado e quem ataca. Não perdoa o nazismo. Não esquece o massacre de 60 milhões de mortos, principalmente civis, nem a desmesura dos 20 milhões de vítimas soviéticas. Não esquece igualmente e faz-nos lembrar, como uma ferida ainda aberta sobre a humanidade, que antes dos massacres perpetrados pelas Waffen SS a Leste da Europa os fascismos da Hungria, da Polónia, da Roménia, da Ucrânia, da Croácia ou do Báltico já tinham iniciado a caça brutal à esquerda e às minorias étnicas, salientando-se os ciganos e os judeus como as principais vítimas. Não esquece a realidade brutal dos campos de trabalho e de extermínio nazis. Também não esquece e não nos faz esquecer os jogos de bastidores entre as democracias ocidentais e o nazismo e entre aquelas e a URSS. A fraqueza de uns foi o impulso assassino de outros. De resto, há algumas novidades neste processo histórico, fruto da possibilidade do autor em ter acesso a documentos desclassificados, como já dissemos. Ficamos com ideias mais claras sobre alguns factos envoltos ainda em nebulosas. Por isso vale a pena ler este «À Beira do Abismo». 

Dou a voz a Ian Kershaw (págs. 426-427)
«Esta queda sem precedentes (o abismo da desumanidade) era inevitável numa Europa assolada pelos ódios étnicos e de classe, pelo racismo radical, pelo antissemitismo paranoico e pelo nacionalismo fanático. Entrar em guerra movido pelo ódio e apostado em erradicar – não apenas em derrotar – o inimigo foi a receita para o colapso de todos os padrões mínimos de humanidade. Foi o caso, em geral, dos soldados que combateram no Leste, mas muito menos na Europa Ocidental. A guerra total foi o ingrediente necessário para converter os antagonismos em matanças numa escala quase inconcebível.
Na guerra, o ato de matar no campo de batalha adquire um ímpeto próprio. A Segunda Guerra Mundial não foi exceção, porém, nas campanhas da Europa Ocidental e do Norte de África, os combates foram, em geral, relativamente convencionais. Na Europa de Leste, as coisas foram diferentes. A crueldade, a indiferença e o mais puro desprezo pela vida humana foram inacreditáveis. Os combates integraram-se numa guerra racial, que derivou diretamente do duplo objetivo da liderança nacional-socialista da Alemanha: conquista colonial e limpeza racial.
O inferno que daqui resultou para soldados e civis foi essencialmente um produto da ideologia: a questão de quem devia viver ou morrer foi primariamente ideológica.»

Mas, à parte, das matanças, dos massacres, das torturas e do extermínio, houve factos históricos importantíssimos após 1945 que o autor traz à superfície depois de estarem afundados em arquivos bolorentos durante quase 75 anos. As posições políticas em Teerão, em Ialta e em Potzdam, a Guerra Fria, a fuga dos nazis e os seus cúmplices, o ouro nazi nos bancos suíços, as Resistências e algumas das suas divisões e traições, o papel do Ocidente na entrega da Checoslováquia aos alemães em 1939 e do incómodo chamado Polónia, o papel da hierarquia da Igreja Católica e dos Protestantes (apresenta mais dados do que já sabíamos), a posição do clero inconformado, o papel hipócrita de Portugal, de Espanha e da Turquia entre muitos outros, como a duplicidade da Suécia e da Dinamarca. As equipas de combate na frente leste onde estiveram 20 mil holandeses, entre belgas e luxemburgueses voluntários nazis (aliás, o número dos países que estiveram no bloqueio a Estalinegrado foi intrigante tal a sua quantidade). O Plano Marshall e a ocupação soviética a Leste.
Um facto que não me sai da cabeça e que é quase uma nota de rodapé deste livro: dos 18 milhões de soldados da Wermascht, só há documentos de 100 soldados que ajudaram judeus a esconderem-se ou a fugirem. É muito pouco. Demasiado pouco. Conta-se a história verdadeira de Wilm Hosenfeld, ex-membro do Partido Nazi, oficial, ex-SA que se rebelou contra o horror do que viu e ajudou o músico polaco WȽadisȽaw Szpilman que se tornou a base do filme «O Pianista». Pelo menos este oficial resgatou, infimamente, é certo, a Alemanha. Perguntou ele à mulher numa carte escrita em 1942 «Será que o Diabo assumiu a forma humana?», respondendo logo de seguida: «Não tenho a mínima dúvida!».

A partir da página 492 contam-se uma das marcas europeias do século XX nas duas guerras: as enormes deslocações humanas de refugiados de guerra: 8 milhões no Leste europeu, 2 milhões da Guerra Civil espanhola, mais dois milhões de franceses do norte ocupado, para a região de Vichy, de milhões de refugiados judeus para a América e Palestina fugindo do extermínio e por aí fora, não contando com os milhões de ucranianos colaboracionistas, tchetchenos, georgianos e outros que foram deslocados para o norte da Rússia, para além das minorias alemãs existentes após o retalho da Alemanha pelas potências vencedoras (aliás, os contritos alemães para pagar o esforço de guerra no Leste foi enorme e tratado aqui num artigo que fiz sobre a obra de Herta Müller, uma alemã deslocada para a Roménia). Diz Ian Kerschaw: «As estatísticas das deslocações demográficas são, como todos os dados macroeconómicos, totalmente impessoais. Não dizem nada sobre a morte, a destruição, o sofrimento e a miséria».

 São de análise sistemática: o aumento da influência dos partidos operários, o decréscimo dos direitos das mulheres após 1945 confinadas novamente ao lar, uma mobilidade social mais pequena do que seria de esperar e um refazer das elites anteriormente dominantes, a panóplia de organizações defensoras do mercado livre que se instalaram no mundo com os seus efeitos que todos conhecemos a partir do relatório Beveridge e Bretton Woods: o FMI, o Banco Mundial, O GATT e o Estado Providência apoiado e construído a partir dos conservadores ingleses e da democracia-cristã alemã e italiana. Vinha aí a Cortina de Ferro (segundo o conceito de Churchill) e os 30 Gloriosos Anos.

Mas há mais a partir daqui…e talvez seja o que talvez nos anime a continuar a leitura, mesmo crentes que sabemos tudo sobre a época pós-45. Talvez este livro nos dê uma ajuda preciosa e muito, muito, preocupante sobre o leitmotiv da Guerra.

António Luís Catarino
Coimbra, 18 de março de 2020