quinta-feira, março 12, 2020

Uma língua de assombro. «Assim Nasceu uma Língua», de Fernando Venâncio

Assim Nasceu Uma Língua

Só consegui comprar a 2ª edição de «Assim Nasceu uma Língua» de Fernando Venâncio o que me leva a pensar que os portugueses ainda não estão completamente divorciados da sua língua, mesmo com os atropelos de que tem sido alvo (espero, neste artigo, não cometer algum). Outro facto de realçar: quando o adquiri, estava em 1º lugar nas vendas da livraria, o que se pode já considerar um feito bonito de se ver, visto ultrapassar algumas «bestas céleres» do mercado editorial.

O livro em si é magnífico. Dá-nos pistas interessantíssimas sobre a morfologia, o étimo, a sintaxe, a fonologia e a história do português. Lê-se muito bem, mas proponho que o leitor atento se muna de um lápis para sublinhar algumas questões francamente importantes para serem conhecidas e apreendidas. Nota-se que foi um trabalho de uma vida. Venham outros livros...

Como falávamos antes do latim? Fernando Venâncio aponta-nos para um eventual dialecto com algumas regras gramaticais definidas pelo uso, lá para 600 a.C.. Com o latim e o domínio romano, foi-se consolidando uma escrita e um falar comum da Galécia Magna com o famoso romance que mais não seria que o galego-português. Mas o autor avisa-nos de alguns factos que devemos interiorizar: nem tudo o que parece é (como dizia o outro, mas ao contrário), ou seja, nem todas as palavras que usamos vêm do latim, embora estejamos convencidos que sim, pela grafia ou sonoridade. A Geografia também acompanha a História: a Galécia Magna estaria compreendida nas fronteiras actuais da Galiza até ao Vouga fazendo fronteira sul com este rio. Ou seja, o português não era mais do que o galego. Falávamos, pois, galego. Com a formação do condado e mais tarde com a emergência de Portugal, fomos apurando um modo de falar que se foi separando paulatinamente do galego, com a introdução da nasalização dos ditongos ou com a síncope do n e do l em muitas palavras. Continuaram os diminutivos em inho, tal como hoje ainda, mas a separação seria uma realidade. À medida que íamos cavalgando para sul, as coisas sofreram uma transformação histórica, geográfica e linguística.

A partir de 1400, com a dinastia de Avis e mesmo com as guerras com Castela, o castelhano foi-se impondo entre nós, voltando-se a introduzir o n e o l em algumas palavras, mas recusando o desaparecimento dos ditongos ão e ãe ou até o ou, o que irritava alguns puristas da língua, afirmando inclusive que estes dariam uma «sonoridade canina» que desfeavam a harmonia da nossa língua e dificultava a compreensão do português por estrangeiros! Já o plural destes ditongos nasalados é outra saga. Ora uns acabam em ões ou ãos ou ães. É uma espécie de «à vontade do freguês». Segundo Fernando Venâncio, o seguimento da norma castelhana daria mais solidez à nossa língua, afirmando até um sonoro «Bem feito!» a algumas opções nossas. Portanto, a aproximação e convivência com Espanha tem a ver não só com aspectos políticos, mas também de moda. A corte espanhola era um chamariz para poetas e artistas portugueses, apesar da ocupação entre 1580 e 1640. 

O autor dá-nos histórias extraordinárias, «espantosas» ou até «esquisitas» sobre os falsos amigos que povoam o actual galego e português e não é por acaso que coloco as duas palavras entre aspas. O leitor que descubra socorrendo-se de um dicionário online e verá até que ponto pode ser embaraçoso utilizar estes termos na Galiza. E até a palavra «embaraço» tem outra conotação no castelhano!

Quem queria esta mudança que nos afastou (definitivamente?) da Galiza? Segundo o autor, o eixo Coimbra-Lisboa que se queria afastar do falar patego e antiquado do galego e do falar nortenho. Aproximámo-nos, pois, da Espanha, da Inglaterra (através da casa de Lancaster, penso eu) e da França no século XVIII e XIX, onde fomos buscar imensos francesismos.

Bom, esta apresentação não mostra a extrema vitalidade da obra de Fernando Venâncio. Poderia dar aqui exemplos que nos admirariam sendo repletos de curiosidades e exemplos (as chamadas «estações de serviço»), mas seria fastidioso aqui enumerá-las, nem é esse o objectivo destas considerações, mas um conselho de amigo: comprem-no quanto antes e leiam-no com prazer.

António Luís Catarino
Coimbra, 12 de março de 2020