Relógio D'Água, 2021. Tradução de António Gonçalves
«Eu nunca terei paz!», afirma Lucas no primeiro livro desta trilogia intitulado «O Caderno Grande». Segue-se «A Prova» e «A Terceira Mentira» escritos pela húngara Agota Kristof falecida em 2011, na Suíça. Já editada em Portugal em 1986 é, contudo, a partir de 2000 que alcança alguma notoriedade entre nós pelas editoras Asa, Nós e Cavalo de Ferro. Esta tradução é revista por António Gonçalves, pela Relógio D'Água e junta os três livros antes editados separadamente com o nome de «Trilogia da Cidade de K.» o que terá toda a lógica visto que fazem parte do que a autora entendia ser uma saga que narra a «trilogia dos gémeos».
Voltemos à frase de Lucas «Eu nunca terei paz!» num dos muitos diálogos desenvolvidos pelas personagens que se vão revezando numa espécie de vertigem teatral onde temos dificuldade em distinguir o real do imaginário. Essa densidade vai tornando-se mais opaca quando transitamos a leitura entre os livros. Entre a opacidade psicológica das personagens, principalmente de Mathias e de Lucas (nomes de evangelistas que, creio, não existirem por acaso), os gémeos, dá lugar a uma abertura extraordinária, quase de revelação última, se a autora assim o quisesse. Contudo, volta-se a entrar e a sair de zonas sombrias para uma pura iluminação pessoal. É um livro fortemente impressivo que impõe uma opção clara entre o mal e o bem, mesmo sabendo que se cruzam, que interagem entre si, que todas as personagens do livro, algumas delas decisivas, trazem essa passagem, promovem um ciclo intransponível de actos que se sucedem e se revelam muito para além dessa dicotomia. A crueldade elevada ao extremo, a rudeza de quem já viu tudo, de quem não pode acreditar, de todo, na humanidade encontram-se com a disponibilidade solidária, com o amor, com o desejo, com a preocupação desinteressada com o outro. É evidente que estamos perante um clássico da literatura.
Sabe-se pouco, sobre a vida de Agota Kristof (Ágota Kristóf, com a acentuação e grafia originais). Pelo menos sobre o que pesquisei e encontrei. Esta trilogia, que recomendo a todos lerem, inicia-se antes da II Guerra Mundial, atravessa-a; aliás, os húngaros atravessam-na com dois exércitos de ocupação antes e depois da guerra e sofrem com esse movimento quase tectónico de mortes, fome em extremo, vinganças, armas, soldados, abusos, mudanças obrigatórias, fugas permanentes para todo o lado. A zona de fronteira é uma miragem, uma zona tampão, e é lá que os gémeos vivem. Tudo ali se passa num universo concentracionário, vigiado, que os diálogos extremamente contidos entre as personagens nos dão a sentir. No fundo, nada é o que parece, tudo se transforma em coisa má, ou, dentro do mal, arranja-se sempre uma solução onde predomina o auxílio, a partilha e o sentido de comunidade. Não se pense, todavia, que é um livro sobre a guerra. Também o é, visto que a autora não se pode apartar da sua própria vida (nasceu em 1935), mas não se pode esquecer que ela tinha 21 anos em 1956, ano da invasão do Pacto de Varsóvia à Hungria, a primeira grande resistência à burocracia que a morte de Estaline, três anos antes, não modificou. Foi na leva de 200 mil refugiados que abandonaram a Hungria nessa altura, deixando para trás dezenas de milhares de mortos e um país traumatizado, sem entender a repressão sobre operários, camponeses e estudantes que exigiam uma vida melhor e que esse estado não conseguiu sequer equacionar. Com 21 anos acredite-se que não se esquece facilmente uma revolução. Sabemo-lo. A história da trilogia pára no final dos anos 80 após a queda do Muro, sem que Agota Kristof, em determinadas linhas, não dê conta igualmente da desilusão do modo de vida ocidental, demasiado preocupado com o dinheiro e com a solidão. Fica-nos uma espécie de nostalgia por uma vida comunitária de pequenas cidades, de vilas e de aldeias com uma coesão firme, com uma cola social que pensaríamos indestrutível. Não obstante, tudo morreu com o fim dos gémeos e do recomeço de guerras surdas que exigem seguir a sua própria lógica de destruição/reconstrução/repressão. A possível verosimilhança, a realidade que a autora nos propôs é, paradoxalmente, o título do último livro da trilogia: «A Terceira Mentira». Inesquecível.
ps: um obrigado muito especial à Inês Lampreia que me apresentou este livro excepcional.
alc