terça-feira, abril 09, 2024

«O Mistério da Estrada de Sintra», Eça de Queirós e Ramalho Ortigão

 

BNP, segundo o Acordo Ortográfico de 1945, edição de 1844. Capa de Ana Ferreira
Atentem bem, seguidores indefectíveis de policiais contemporâneos, crentes no ADN helicoidal e no CSI de cadáveres falantes, consumidores de péssimas leituras nórdicas tão infantilizadas quanto brutais, satisfeitos com a descoberta de assassinos impiedosos pelas imagens de videovigilância, de consultas aos movimentos dos cartões electrónicos, e presos por corpos policiais de choque, sem que haja necessidade da mínima dedução lógica dos investigadores: «O Mistério da Estrada de Sintra» pode dar-vos lições (a mim deu!) de como se interpretava a existência de um cabelo louro (de mulher) na cama de um cadáver que se presumia ser inglês. Isto, mesmo que Eça e Ramalho tenham apodado o seu romance de «execrável» e que «nele, há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar.» Cá para nós, temos uma certeza quase absoluta: divertiram-se «a valer». Embora não seja o melhor deles, o romance é inesquecível. Atentem dizia eu, nesta prosa do tal cabelo louro:

«(...) Prolongou-se a minha dolorosa surpresa. Aquele cabelo luminoso, languidamente enrolado, quase casto, era o indício de um assassinato, de uma cumplicidade pelo menos! Esqueci-me em longas conjecturas, olhando, imóvel, aquele cabelo perdido.
A pessoa a que ele pertencia era loura, clara, decerto, pequena, «mignonne», porque o fio de cabelo era delgadíssimo, extraordinariamente puro, e a raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos por uma ligação ténue, delicadamente organizada.
O carácter dessa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo não tinha ao contacto aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas de temperamento violento, altivo e egoísta.
Devia ter gostos simples, elegantemente modestos e dona de tal cabelo, já pelo imperceptível perfume dele, já porque não tinha vestígios de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados fantasiosos.
Teria sido talvez educada em Inglaterra ou na Alemanha, porque o cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado, hábito das mulheres do Norte, completamente estranho às meridionais, que abandonam os seus cabelos à abundante espessura natural.» (págs. 41/42)

Sim, isto é dedução. Cerebral, inteligente, perspicaz. Forçada? Talvez um pouco, mas põe a um canto o que hoje para aí se vê de muito mau. Teremos sido fadados somente para Eça e Camilo? E o português de 45? Não vos cria inveja? Ora digam lá de vossa justiça... 

BNP, segundo o Acordo Ortográfico de 1945, edição de 1844. Capa de Ana Ferreira