segunda-feira, abril 15, 2024

«Du Traité de savoir-vivre à l'usage des jeunes générations à la nouvelle insurrection mondiale», Raoul Vaneigem

 

le cherche midi, 2023
«A poesia não cai do céu. Ela nasce no bas-fonds da existência»
Raoul Vaneigem, pág.164

Um dos erros em que não cairei é comparar este livro com o já icónico «Arte de Viver das Gerações Novas» publicado em 1967 pelo então membro da Internacional Situacionista, Raoul Vaneigem, hoje com a idade de 90 anos. Como sabemos, foi editado em Portugal, em 1975, no Porto. A mesma tradução de José Carlos Marques, foi recuperada pela Letra Livre em 2014 e já vai na 3ª edição! Mais que nunca a lucidez e o desenho de vastas possibilidades de substituir o capitalismo por uma realidade em que se possa dar azo à verdadeira arte de viver. Raoul Vaneigem publica «Do Tratado da arte de viver das novas gerações à nova insurreição mundial» (tradução livre, minha), em 2023 e aponta para a criação de novas subjectividades consequência das estruturas hierárquicas estatais, ambientais e sociológicas que entretanto foram tomando forma no espaço de 56 anos. Digamos que é um discurso denso, fragmentário, mas, paradoxalmente, de uma coerência e coesão teóricas a que sempre nos habituou. No ocaso da sua vida física, apresenta-nos possibilidades reais de transformação pela emergência da Vida e da Autonomia baseada na autogestão generalizada. Possivelmente sem o vigor do final dos anos 60 que conduziu à «carga de cavalaria», para citar Debord, do Maio de 68, mas com um traço de conhecimento e de experiência entretanto adquirido. Dizia-se dele, quando abandonou a IS, que era o lado solar dos situacionistas e Debord o seu lado lunar. Não tenho essa opinião, mas classifico este livro como uma prova límpida que, numa insurreição futura, é tão necessário o amor, quanto o confronto contra as hierarquias tomem elas as roupagens estatais, como as burocráticas. 

Aqui, pela mão de Vaneigem, pode-se sentir a luta contra a desumanização propagada pelo capitalismo e muitas vezes retransmitido por um anticapitalismo mais do que uma vez anunciando a escravização do proletariado que recusa o consumismo e o trabalho assalariado (hoje, bem diferente do que era antes) sob o argumento de o emancipar. Mas reconhece que até esses burocratas estão cansados de já ninguém os ouvir. Uma insurreição da vida quotidiana propaga, em França e no mundo, uma guerrilha que sem matar, está apostada em erradicar a engrenagem que destrói o que está vivo. Necessário será, pois, destruir as empresas do Lucro e a criação de zonas autónomas e de criação livre. A luta das mulheres contra o patriarcado (uma constante neste livro, sem que defenda um matriarcado tão nefasto quanto aquele) tornou-se exemplar. O indivíduo emancipa-se do individualismo, tão caro igualmente em Stirner. O estado afunda-se. A autodefesa do que é vivo, confronta-se com o envenenamento generalizado. O exercício do Poder ensombra-se no ridículo. A verdadeira imagem de quem nos governa são autênticos demiurgos da morte programada contra o Natural e pela guerra permanente. O seu glossário, inscrito neste livro, é de algum modo uma esperança revolucionária, sem que Raoul Vaneigem deixe de nos avisar que ter esperança sem nada fazer é tão negativo quanto à desesperança. 

Seria muito importante a tradução deste livro para o português. Haja quem.