domingo, junho 07, 2020

«Na cidade exposta – Coimbra», de António Alves Martins



Este livro é um portento. Muito andei eu para aqui chegar - «portento»! No significado da palavra eu posso encontrar igualmente «encanto», «maravilha», «prodígio» que não andam longe do sentimento que o tive a ver e folhear.

Mas deixemo-nos de entusiasmos e apresentemos os seus autores: de ideia inicial de António Alves Martins, lemos textos deste autor e de José António Bandeirinha. As fotos são de António Alves Martins. A edição do livro-quase objeto foi de 50+1 livros todos numerados. Informação adicional é que o livro foi publicado pela Artes Breves Edições «em edição única e exclusiva com a chancela (informal)» da editora e a tipografia foi a muito conimbricense Damasceno e com a qualidade que se lhe (re)conhece. Portanto, um livro sobre Coimbra, de Coimbra e feito com matéria cinzenta de Coimbra. Mas engane-se o incauto que pense que é laudatório para a cidade e suas vetustas instituições. Não é. Talvez esteja ao nível, e não estou a exagerar quando o digo, de um célebre número único da revista «Via Latina» dos anos 70 que não foi nada agradável para a urbe, assim como os vários textos da «Fenda» e da «Pravda» que não criaram raízes. Ou das desprezadas «PO.EX.» e do «Círculo de Artes Plásticas».  Sabemos bem o porquê.

Portanto, o número da própria tiragem é, em si mesmo, uma provocação. Se assim o quiserem e entenderem ter um livro que vai esgotar rapidamente. Peçam-no, pois, quanto antes a artesbreves@gmail.com .

Na apresentação dos autores lê-se que António Alves Martins se formou em Coimbra em Filosofia, editou poetas como Gil de Carvalho, António Ramos Rosa, Alberto Pimenta, Jorge Sousa Braga, Jorge Fazenda Lourenço, Cavafy, Larkin, estes na «Centelha/Fora do Texto» já falecidas e colaborou com a «Cotovia». Editou, na «Deriva Editores» do Porto, «Cidades Materiais» em 2016 e mostrou-nos fotografias belíssimas numa exposição homónima do livro agora editado, no Liquidâmbar, em 2019.

José António Bandeirinha é um arquiteto de Coimbra cujo curso tirou nas Belas-Artes do Porto e é Professor Catedrático no Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra. Foi pró-Reitor para a Cultura e Director do Colégio das Artes da mesma universidade. É investigador do CES e Director do DAUC. A sua intervenção em prol de uma Coimbra que rompa com os cânones que a orientaram infelizmente nos últimos anos é conhecida e reconhecida por todos os cidadãos que vivem a cidade.

Comecemos pelas afirmações de António Alves Martins neste livro belíssimo: «Esta brochura, em conjunto com as oito fotografias (+ uma) das dezasseis então expostas [o autor refere-se, portanto, à exposição realizada no Liquidâmbar] – agora em novo formato / suporte - , corresponde a um segundo momento dessa materialização única que dá acesso ao tempo propício a pensar e a olhar a fotografia: a experiência concreta da imagem impressa em folhas de papel que, embora soltas, são envoltas numa capa cuja janela abre para a narrativa do livro: o livro, como lugar privilegiado do tempo lento das imagens (ou do seu silêncio).»

Depois desta descrição da fusão existente entre a palavra e a imagem com uma desenvoltura e um rigor concetual realçado e apresentado por António Alves Martins, chegou a vez da justificação do espaço e do lugar Coimbra «(…) tornou-se assim a cidade exposta – na dupla dimensão de paisagem e obra – (…) – nas imagens impressas da cidade – é o resultado de um processo que implica, em primeiro lugar, o assumir da caminhada livre, o movimento de um olhar disponível para o inesperado de um plano e das suas linhas de fronteira (…)». Ou seja, este que vos escreve lembra aqui o espírito nómada da Psicogeografia poética de um Vitor Segalen, de um Rimbaud, de um Baudelaire, ou de um Debord… dado a conhecer pelo fundador do seu movimento, Kenneth White. É essa procura do inesperado que exigiram Vaneigem e Asger Jorn, queimando a arte e fundando espíritos livres e primitivos, igualmente telúricos. É esta a procura livre de um livro que respira liberdade. E ainda e sempre Italo Calvino, dir-se-ia um alter ego de «A Cidade Exposta».

Quanto a José António Bandeirinha, expõe a fórmula de um texto coerente, suave e paradoxalmente de uma grande violência para com as opções conimbricenses dos últimos anos e, quiçá, de décadas muitas. A narrativa aparece de duas fontes: uma que foi uma intervenção sua há dezasseis anos e outra há apenas alguns meses. A junção destes dois momentos, por paradoxal que se ache, obrigaram-no somente a alguns ajustes, o que decididamente é péssimo para a urbe. Neles podemos ler, e com o perigo inerente à descontextualização das frases:

«Para muita gente, para mesmo muita gente, confessada ou inconfessadamente, Coimbra não passa de uma referência estereotipada. Mas o problema não é esse, o problema é que a repetição acrítica do estereótipo desgastou o conteúdo e apagou o significado real. A sensação é que o que fica é um imaginário paradoxal e altivo que, embora radicado numa cultura urbana ancestral e identitária – e talvez por isso mesmo -, foi ficando fossilizado, como ecrã obsoleto da realidade e da vida que se ia degradando face ao fluir dos tempos.»

O mote está dado e José António Bandeirinha não esmorece na análise da sua cidade. Citando igualmente Calvino, o arquitecto avança com ‘’Seis propostas para uma Coimbra (ainda)’’ cuja descrição pormenorizada não caberia aqui. Contudo, no item ‘’Leveza’’ (existem mais cinco que o leitor averiguará certamente) Bandeirinha avisa-nos «O sentido que aqui se dá à Leveza é sensivelmente o mesmo que em Calvino [Lições Americanas, 1984]. Basicamente, diz respeito à transformação do que é pesado em leve. Tratando-se de Coimbra, de um certo estado depressivo e de uma mais que óbvia decadência, não devemos deixar que a ‘’culpa’’ que neste caso se opõe à leveza, tome conta da nossa motivação para inverter o processo» e continua sobre o estado da decadência da cidade «(…) São muito complexas e intrincadas as razões desta decadência, sobretudo porque não têm uma origem única, e muito menos se podem expressar num simples parágrafo. No plano temporal, são de ordem simultaneamente remota e próxima, no plano espacial são de ordem simultaneamente externa e interna, são de ordem histórica, política, social e cultural, e cada uma destas ordens auto-alimenta-se e alimenta as restantes.»

De uma clareza meridiana, esta análise que se espraia no ensaio. E a clareza e a violência suave com que este projecto se desenvolve para Coimbra, de Coimbra, contra Coimbra, continua nas fotos extremamente belas de António Alves Martins desta mesma decadência e vivacidade de quem se propõe dizer, como toda a vida fizeram os autores, que a cidade merece melhor. Que está escondida e que se remete para uma solução uterina, da procura de origens mistas e promovendo a rebeldia das paredes que nos falam e soluçam (ainda). Isto é de quem não se cansou.

O livro é, na realidade, fantástico.

António Luís Catarino
Coimbra, 7 de junho de 2020