terça-feira, maio 12, 2020

Danúbio, de Claudio Magris



Li este livro duas vezes. Não por mero coleccionismo de palavras, mas porque os objectivos que me levaram à sua leitura eram diferentes. A seu tempo, Claudio Magris não tinha ganho o Nobel e tive um prazer imenso em descobri-lo e não o largar mais. 

Contudo, hoje voltei a embrenhar-me com um mapa do rio Danúbio ao lado. Há uma viagem geográfica, que a fez Heródoto ou Estrabão em tempos antigos e outros, mais contemporâneos,  mas menos interessantes; a outra viagem, aquela que eu fiz infelizmente confinado, é a viagem literária que nos oferece um excelente Magris. É a Mitteleuropa de autores como Mann, Kafka, Céline, quando este se refugiava no final da II Guerra na Alemanha nazi, Herder, Goethe, Primo Levi, cercado pelos Lager limítrofes da Germânia, e Canetti que escreve no Delta as suas memórias, poetas românticos como Heine (e como Marx o lia!), dadaístas qual Tristan Tzara, ou o católico Paul Celan, filósofos como Wittgenstein, Marx, Lucáks, Hegel ou Adorno e tantos outros como Herta Müller minoritária dentro de uma minoria alemã da Roménia, Ionesco, Áttila József, Strindberg (com a sua mulher húngara), Lorenz, Jean-Paul Richter, o Danúbio nos mostra tudo e o seu contrário, tal como nos lembra a luta constante dos camponeses contra o jugo dos senhores nobres e quase sempre afogados em sangue, tal como os operários revolucionários dos conselhos de Munique e de Budapeste. Ou a loucura de Luís da Baviera e da imperatriz Sissi assassinada a tiro, espelho de Impérios com pés de barro. 

O rio que nos esconde a origem é o mesmo que nos dissolve num delta ao nascer na Floresta Negra e que alimenta o Mar igualmente Negro. E tudo ao som sublime dos maiores de todos: Bartók, Liszt, Schubert ou Wagner. Nessa Mitteleuropa de Magris não cabe a ignomínia da dita raça superior. O rio demonstra a iniquidade da tese pelo mosaico grandioso dos povos que o atravessaram e que ainda ali permanecem.
Talvez um dia o percorra. Ou o desça, como Kipling e o seu Kurtz.

António Luís Catarino
12 de maio de 2020