terça-feira, junho 30, 2020

«Flauta de Luz», Boletim de Topografia, nº7

Revista Flauta de Luz Nº 7
«Flauta de Luz» - Boletim de topografia, nº7
Tenho adquirido a revista Flauta de Luz. Júlio Henriques é seu editor e coordenador e abre a publicação com «Civilização». Aí, poder-se-á ler numa descrição de uma sociedade doente e a crise de civilização a que assistimos: «(…) A torrente inovadora que tornou crianças, adolescentes e adultos furiosamente agarrados (enganchados, como se diz no calão da droga) a computadores, tablets e smartphones criou uma atmosfera geral de ausência comunicativa, de relação preferível com as coisas, em que avulta um novo tipo de insensibilização. Juntando a cultura do narcisismo [que, mais à frente, Anselm Jappe bem explica juntamente com o fetichismo da mercadoria, nota minha] (modelo parental educativo em que passaram a evoluir as novas gerações) ao impelido apego destas últimas às ‘’tecnologias da informação’’, chegamos assim a auto-estrada digital conducente a este coktail de shots corporais de aturdimento garantido.(…)». O mote está dado e as coisas dividem-se deste modo: os que se apegam às novas tecnologias sofregamente e aqueles que, como eu, ainda compram, leem e divulgam revistas como a Flauta de Luz.

De resto, é com verdadeiro prazer que lemos os artigos que se sucedem a um ritmo vertiginoso para quem pega  na revista, perdão, boletim de topografia, sem a conseguir largar. Comecemos por Raoul Vaneigem, mais lúcido que nunca, a perspectivar novas insurreições e a urgência em criá-las em direção a uma verdadeira humanidade que salve não só o planeta como a espécie humana que se quer autónoma e livre. Que conhece o percurso deste homem, sabe do que fala e da coerência que sempre o acompanhou.  Interessante a sua posição sobre a epidemia de hoje «Seria mesmo necessário o coronavírus para demonstrar aos mais obtusos que a desnaturação em prol da rentabilidade tem consequências desastrosas para a saúde universal? Esta saúde que de forma constante é gerida por uma Organização Mundial cujas preciosas estatísticas disfarçam o desaparecimento dos hospitais públicos? Há uma correlação evidente entre o coronavírus e o desmoronamento do capitalismo mundial. Ao mesmo tempo não é menos evidente que aquilo que recobre e submerge a epidemia do coronavírus é uma peste emocional, um medo histérico, um pânico que simultaneamente dissimula as carências de tratamento e perpetua o mal assustando os pacientes. (…)». Vaneigem assina mais dois artigos um deles uma entrevista truncada no Le Monde e que conhece aqui a sua versão definitiva. Atenção a esta entrevista onde o autor declara a real importância do movimento dos Coletes Amarelos, juntando as ZAD (Zonas A Defender), o movimento zapatista e a crítica contundente aos Black Bloc. Mas, principalmente, a apresentação de uma saída insurrecional e alternativa ao modelo capitalista.

Temos David Watson, autor de Against the Megamachine na conhecida Autonomedia, editora libertária norte-americana, num artigo muito claro «Atualizar os Possíveis» sobre o possibilitismo e as novas utopias na construção de um mundo diferente.

A «Advertência Final» é um exercício irónico de quatro investigadores científicos sobre o tão conhecido «Aviso à Humanidade», de 2017, que juntou 15 mil cientistas de 184 países sobre os perigos que pairam sobre o Planeta. Estes 4 signatários advertem, ao tal aviso, que, sem a crítica ao capitalismo e as alternativas económicas que devem acompanhar essa (ir)responsabilidade do lucro e da rapina de recursos, podem esperar sentados até ao próximo aviso à humanidade. As coisas ficarão na mesma.

Um «suprimento litrário avulso» vai dando conta de autênticos murros no estômago à intelectualidade e ao processo de criação artística em curso. Se o riso era quase impossível de arrancar a quem lesse ou consultasse em diagonal os verdadeiros e reais suplementos literários que proliferam por aí, neste suprimento litrário a verdadeira alegria da leitura neo-abjeccionista brota, incontrolável. Também há insurgência no riso. Atenção aos registos de Júlio Henriques «Amar um robô» (lembrei-me de Sophie, mas podem dar-lhe outro nome qualquer…) e «Mas o que é que nós queremos?». Não percam a sua leitura.

Os artigos sucedem-se com entrevistas a Jorge Valadas / Charles Reeve, que assinou agora o livro «Socialismo Selvagem» saído na Antígona e já divulgado aqui no Deriva das Palavras em http://derivadaspalavras.blogspot.com/2020/03/a-memoria-e-o-fogo-e-o-socialismo.html e uma importante entrevista a Júlio Henriques onde se fala, entre outros, de Paul Mattick, de René Vienet, do Maio 68, de Serge Bricianer ou de René Lefeuvre, editor da conhecida Spartacus. Uma mostra para uma possível construção de uma «antologia da poesia ameríndia contemporânea» acompanhada de artigos de uma verdadeira topografia indígena, tornados aqui os últimos guardadores da humanidade se quer continuar a ser, como os trabalhos de Ailton Krenak (que refere o importante «A Sociedade Contra o Estado» e que conheceu Pierre Clastres), Davi Kopenawa Yanomani, manifestos da Survival International em defesa dos Povos Índigenas, Stephen Corry com «Os melhores guardiães da natureza construíram o nosso meio ambiente e podem salvá-lo», Corsino Vela com «Uma guerra real num mundo virtual», e «Morrer em Rojava» uma coletânea de depoimentos sobre os internacionalistas que morreram pela autonomia autogestionária dos enclaves curdos na Síria, contra o Daesh e o exército turco às ordens da Nato. Provavelmente, para não dizer quase de certeza, que houve algum ímpeto irracional de quem defendeu que a Guerra Civil de Espanha foi a última guerra por ideais revolucionários!

Podem contar-se igualmente com artigos de Jorge Leandro Rosa, Vasco Santos e Chuang. O primeiro versa sobre as tecnologias e poder e os dois últimos analisam não só as implicações do coronavírus e as consequências sociais das novas epidemias para o século XXI. O último, Chuang, é uma revista e igualmente um blogue. O significado da palavra é um cavalo que passa o portão, que (se) liberta. A análise do que se passa na China de hoje, não só ao nível das epidemias, mas igualmente no campo social e da passagem de uma economia fechada para uma economia de capitalismo integrado mundial aponta as contradições a que está votada a ditadura chinesa. É por isso espectável que se tivesse optado pelo anonimato. Mas que é de alguém que está no terreno e que nos passa informação, não se tem dúvidas.

Também se comemora nesta Flauta de Luz os 100 anos de Lawrence Ferlinghetti, esse jovem beatnick ímpar!

Um número único, este 7º boletim, de 289 páginas!, com ilustrações fabulosas, que dá vontade de requisitar numa livraria mais números (a mim faltam-me dois!). Há, de certeza, na Livraria Letra Livre em Lisboa e na Utopia, do Porto. Ou então, flautadeluz1@gmail.com .

Ah…e Cesariny, pois claro, com um «Lembrete de coisas de um passado recente – Uma Raça Maldita». Quem será a «raça mais infame que apareceu à face da Terra?». Ele dir-vos-á.

António Luís Catarino
Coimbra, 6 de julho de 2020