sábado, janeiro 21, 2012

Estranhas Criaturas





MEDUSA

   Há muitas coisas belas. Medusa é uma delas.
   Um penteado de pecados fica bem ao mortal, um olhar petrificante tudo o que pode almejar quem anda pela vida mais que por ódio, amar.
   No olhar de Medusa, vejo Rosa Parks sentada para que outros pudessem levantar-se, vejo os punhos erguidos e as luvas negras de Tommie Smith e John Carlos nas olimpíadas da sonsice que é o adiamento das guerras na paz podre das medalhas, vejo Mahatma Gandhi fiando a fome de justiça e liberdade que nenhuma boca cheia de alheamento poderá compreender, vejo o julgamento de Sócrates, a cicuta bebida de um trago como uma lição perdida na história da nossa incomensurável apatia, vejo Galileu Galilei, Joana d'Arc e até Jesus Cristo eu vejo, como tantos outros que como estes vivem hoje nos bolsos de uma juventude reles que julga ser possível apagar grandes fogos sem fogos.
   Vejo lições de entrega, vejo quem ousou dar-se por si próprio e pelos outros sabendo que entregar-se era descobrir-se e que descobrir-se nada mais é do que lançar-se no abismo da dúvida, da incerteza, no desconforto de uma missão que apenas reivindica alguma limpeza neste mundo de auto-justificado nepotismo, vejo o homem revoltado como cabelos venenosos, despenteado pela noção clara de que desprezar é consentir e consentir é ser cúmplice da porcaria em que chafurda quem mais não sabe do que adormecer em berço de ouro a palha de que se alimenta.
   Há muitas coisas belas. Medusa é uma delas.
   Da sua cabeça decepada hão-de nascer cavalos alados. E nem depois de morta deixará de petrificar quem fite nos seus olhos a verdade que nos aponta: de pedra somos feitos, se desapaixonados e indiferentes. (Henrique Manuel Bento Fialho, Estranhas Criaturas, Deriva)