domingo, março 06, 2011

MALMEQUERES. in Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes

MALMEQUERES


Vou omitir alguns factos da minha vida. A minha vida, aliás, não oferece o mínimo interesse. Caberia numa linha, se assim fosse imprescindível. O seu relato será sempre um exercício de redundância.

Vivia no Redondo ou no Alvito, numa dessas vilas brancas do Alentejo onde se amontoa o torpor e a inutilidade dos velhos. Desses tempos conservo na memória a cal e a imensidão do seu reflexo, como se atrás de nós nunca se devesse deixar nada, como se cada passo acarretasse a extinção forçosa de qualquer coisa. Morrera primeiro o meu pai. A doença levaria a minha mãe na Primavera seguinte. Cuidei dela até ao último dia, desafiando com frieza o seu olhar conturbado para me conseguir conter. A morte, o desaparecimento, talvez seja isso o que mais nos perturba quando, após caminharmos por um longo prado, nos detemos na orla de um bosque impenetrável. Abandonara o meu emprego em Lisboa e regressara ao Alentejo para tomar conta dos meus pais e ajudar na loja. Tratava-se de um estabelecimento comercial antiquado, pouco atraente, e a forte concorrência das grandes superfícies, primeiro, e depois dos chineses, retirou-lhe qualquer hipótese de sobrevivência. Não tinha mais família. Não tinha expectativas. Vendi a loja e a casa, paguei as dívidas e apanhei o avião para a América.

Creio que consegui ser conciso até agora. Mas estou consciente de que a síntese pode apenas ser uma desculpa, um mero expediente, pouco hábil, aliás, para evitar a repetição. Às vezes sinto que gostaria de ter outra vida para contar, uma existência com maior densidade factual, digamos, mas contrario esse sentimento ao constatar que, qualquer que fosse essa minha vida alternativa, seria idêntica a história de que disporia para contar. Isto conforta-me, não acaba com a tristeza e não desfaz as dúvidas, mas pacifica-me, contém-me, evita que dê largas a uma imaginação febril que tem tanto de inconsequente quanto de auto-destrutivo. Bem necessitei dela e bom uso lhe dei no momento de escolher um ramo de negócio para me estabelecer, aplicando o dinheiro que trouxera de Portugal. As metáforas não enganam, são até demasiadamente precisas. Na verdade descemos, procuramos as raízes e depois a terra, mas a vida leva-nos de subida pelas árvores, optando pelo ramo que nos parece mais seguro ou que nos deixa mais próximos de um ninho, de um favo de mel, de um fruto. A loja de tintas foi um êxito e o serviço de entregas que organizei, de tão eficiente, viria a ser copiado por todos os comerciantes da região. Casei, tive filhos, comprei um apartamento que mais tarde, quando me tornei um empresário abastado, troquei por uma vivenda nos subúrbios, onde a violência urbana e racial demorou a chegar. Comprei uma casa de madeira na margem de um rio, com um longo ancoradouro onde me sentava a pescar ou simplesmente a olhar para as estrelas, nas noites cálidas do Verão, enquanto ouvia as crianças a brincar e pensava que tudo poderia ter sido tão diferente.

A Portugal nunca voltei. Não mantive contactos com ninguém. Só a duas ou três pessoas confidenciei que vinha para a América, mas nunca escrevi a dar o meu endereço. Não tenho saudades. Na cidade onde vivo não há mais portugueses. Durante muito tempo considerei que se tratava de um factor vantajoso.

A Lúcia morreu há dois anos. Cuidaram bem dela no Lar. Apenas desligaram as máquinas quando se tornou de todo impossível iludir os funcionários da seguradora que vinham todos os meses averiguar a evolução do seu estado de saúde. Sabia que nada havia a fazer, que a recuperação estava fora de causa, mas quando estava junto dela, quando lhe tomava a mão era como se de novo a conhecesse e tivéssemos ainda todo o futuro pela frente.

Os meus filhos quiseram que fosse viver com eles, não estaria sozinho e ajudaria a criar os netos. Todavia, prefiro ficar por aqui. Há ainda coisas que esperam por mim. Saíram de casa muito cedo, os meus filhos, como é de costume na América. Telefonam de vez em quando e vêm pelo Natal, a meu pedido. Peço-lhes também que façam de conta que não existo, pois não pretendo incomodar ninguém com a sobrecarga da minha velhice. Gostava que tivessem uma vida plena. Para me entreter ajudo nas obras sociais da paróquia. É uma forma de me lembrar da Lúcia, de a prolongar em mim um pouco mais. Às vezes digo ao padre que acredito em Deus sem convicção. Ele pensa que gracejo e fico livre de explicações e de conversas difíceis.

Não é possível ficar indiferente a certas imagens. Tenho muito de bom na memória e guardo ainda muito mais na imaginação. Creio, contudo, que já falei de mim mais do que suficiente. Nos dias em que o desalento me desestabiliza dou longos passeios pelos prados das redondezas. Pergunto-me se fui digno da existência que tive, mas trata-se de uma questão retórica, à qual sei de antemão que vou responder positivamente. Porém, quando me pergunto se fui feliz não sou capaz de formular uma resposta convincente. Regresso então a casa, cansado, para me ocupar com qualquer coisa que me livre desse tormento. Nas ocasiões de maior pânico grito. Esbracejo e grito. Mas apenas consigo acalmar depois de arrancar, uma a uma, as pétalas de vários malmequeres. in  Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes

 
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