quarta-feira, junho 23, 2010

Alfabeto Adiado, José Ricardo Nunes [pré-lançamento]


 Reflection, Lucian Freud, 1985

[Pré-lançamento de Alfabeto Adiado]
EU, EM 1963

Em 1963 eu ainda não tinha nascido e por isso não poderia ter ouvido essas palavras, pronunciadas por alguém, de súbito iluminado, subitamente alguém, alguém que lê à janela, vai o meu pai a passar
A fractura não me separara, não me erguera ainda nos ossos quebradiços para repetir um ritmo alheio, a entoação difusa que já existia antes de ser criada
Não era ainda eu, em 63, essa curta palavra, desprezível, que deita abaixo as árvores e depois separa os ramos do tronco e sacrifica as folhas e verga florestas inteiras pelo puro prazer de deitar à terra nomes que não lhe sobrevivem
Porque se trata de uma palavra verdadeiramente estranha, eu, ofensiva, protagonista da discórdia, de um desentendimento
Eu não tinha sido ainda derrotado, em 63, pelo anónimo pulsar que desde o início contamina as ascendências
Havia ninguém de um lado e doutro e o meu pai vinha puxar a vara que crescia na areia com uma ideia de origem no rosto, eu suspendia a minha própria concepção, vazio, como se o mar me revirasse
O mal não alastrara, a funda secura que remete ao silêncio não tomara conta das aldeias mais remotas, ainda o terror abençoado de quem escuta não começara a dissipar-se depois do inaudível ter tomado um pouco de carne e aparecer na boca de alguém, porventura o meu pai
Não sei porque penso sempre nas analogias, como se escrever na tábua das comparações devesse salvar-me de um destino mais verdadeiro, mas depois procuro uma razão e o sangue solta-se um pouco por dentro e oiço a voz do meu pai numa fotografia, eventualmente revelada em 63
Havia autocarros de dois andares e a juventude perseguidora do meu pai, um rosto esclarecido, com vontade de mim, perdido na fantasia de um abismo, já um pouco eu ali desenvolvido
Eu já era verdadeiramente o meu pai, nesse ano distante, quando os papéis consumiam tudo e o futuro deixava de ser possível
Eu, o meu pai, um livro obscuro e o ano de 1963, agora que a praia está deserta e se aproxima o cinquentenário e eu posso livremente desenvolver-me, expandir-me, configurar-me, sentindo que as barreiras se dissolvem à medida que se erguem
Ninguém me toma, vontade dispersa na areia
Eu não é palavra que se diga muitas vezes e espalha-se com lentidão e não acode assim que o nome fica cativo da memória
Eu queria falar mas estou longe de um centro e a ignorância que me desvia o sangue guarda apenas acolhimento para as crianças que brincam longe de mim
Adopto, recebo, incorporo, tal como nesse ano remoto foi permitido que o mal viesse a nascer e a ganhar volume assinalável
As coisas nunca são o que parecem e posso encontrar, eu, numa raiz, num veio valioso de minério, a feroz contaminação que prolonga o conhecimento e a ausência, o instinto feliz e uma oratória desadequada aos nossos tempos
Como se eu desistisse de ir ao meu encontro e escutasse de um outro, tudo ainda informulável, aí por 63


José Ricardo Nunes, Alfabeto Adiado, Deriva Editores, 2010




[Aos leitores que o desejem, a Deriva pode fazer chegar um exemplar autografado e com dedicatória]

Apresentação de Alfabeto Adiado, de José Ricardo Nunes, por Luís Mourão, dia 25 de Junho, pelas 21.30, no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha.