sábado, maio 08, 2010

"Ainda haverá milagres em Fátima?" , Miguel Carvalho



O Altar, de Miguel Carvalho 
in AQUI NA TERRA

Natálio Reis bem gostaria que as suas preocupações diárias se resumissem a encomendar ao artista Zé Penicheiro uma nova bandeira da freguesia com os três pastorinhos.
Seria até uma boa maneira de comemorar os 90 anos das supostas aparições de Nossa Senhora a Lúcia, Jacinta e Francisco, não fosse o caso de Fátima andar precisada de milagres que, pelos vistos, ultrapassam os desígnios de Deus e a vontade dos homens. «Temos imensas carências e necessidades», desabafa o presidente da Junta. Ninguém diria.
O fenómeno religioso pôs Fátima no altar do mundo. Os peregrinos, as celebrações e os negócios também se multiplicaram a olhos vistos. Mas a terra onde vivem 15 mil almas e pela qual passam, anualmente, quatro a cinco milhões de pessoas, está longe de levar uma vida santa. Não há hospital público e o único Centro de Saúde funciona até às 20 horas. O agrupamento de jardins-de-infância e escolas vai ser encerrado pelo Governo a decisão é contestada e nem os transportes públicos passam por Fátima. Ruas e passeios andam num desarranjo dos diabos e a iluminação pública mete medo ao susto. Os acessos à cidade, sobretudo aos fins-de-semana, entopem. Os locais de lazer são escassos. Não há um teatro e a única sala de cinema funciona dentro de um shopping. Museus, só os de carácter religioso. Livrarias, idem. Com algum esforço e olho vivo, encontram-se um Dostoievski e um Nicholas Sparks. Na mesma prateleira, sem se engalfinharem. A Junta, essa, só pode gastar 2 500 euros em livros para a biblioteca. O executivo encomendou um estudo sobre a situação económica da freguesia. Não é preciso, porém, ser vidente para esbarrar nas evidências: «Com os terrenos caros e a falta de uma rede viária decente, um empresário tem de acreditar em milagres para investir nesta terra», ironiza Natálio Reis. No fundo, «o Estado e os sucessivos governos esqueceram-se de Fátima. O 25 de Abril não chegou cá, mas olhe... pelo menos, já se pode dizer mal», reage o autarca, eleito pelo PSD. Ao diagnóstico, nem sequer falta o mínimo consenso político. «Nós, filhos do regime democrático, temos de nos penalizar. Se alguma coisa aqui se fez, foi no tempo da outra senhora», admite José Alho, vereador do PS na Câmara de Ourém, sede do concelho.

Apenas o território propriedade do Santuário, na Cova da Iria, não é afectado pelas dores desta Fátima que não vem no mapa. O recinto está bem cuidado, recomenda-se e até se adaptou aos novos tempos: uma espécie de slot machine com 15 cofres, situada nas traseiras da Capelinha das Aparições, acende velas eléctricas à razão de 50 cêntimos cada. O Santuário tem, ainda, a sua própria guarda de vigilância, serviços de apoio aos peregrinos e postos médicos com voluntários para pequenos males de cabeça, tronco e membros. Ali, o saneamento básico chegou cedo, algo que ainda é uma miragem para a maioria da população. «Vai tudo para a fossa», diz Carlos Marques, 56 anos, residente nos Valinhos, em Aljustrel, onde nasceram as crianças «videntes». «Lá em cima não falta nada», aponta. «Lá em cima» é o largo onde pegaram de estaca lojinhas de comércio religioso e profano. Tapetes com cãezinhos e estatuetas da Virgem convivem, lado a lado, com cachecóis do clube do coração. Estamos a dois quilómetros do centro da terra e aqui, nos itinerários e espaços museológicos à guarda do Santuário, tudo reluz e brilha. O resto vive de sombras.
Casas esventradas, terrenos com lixo amontoado, caminhos e vidas ao deus-dará. «Um vizinho meu, de 70 anos, ainda trabalha na pedreira, para sobreviver. Eu tenho a minha reforma de 370 euros, mas pago 35 contos de renda, fora água e luz», conta Carlos Marques, braços apoiados num muro, enquanto se lamenta de excessos na vida, à conta de álcool e tabaco. Tem uma mão aleijada e, à noite, dorme com uma máscara de oxigénio.«Sou católico, mas a Nossa Senhora a mim não fez milagres», diz, regressado do campo, com favas para o jantar.
O grau de instrução dos habitantes de Fátima não ultrapassa o ensino básico. O número de analfabetos ou dos que apenas sabem ler e escrever é superior à média nacional. Escolas, colégios, lares de terceira idade, centros de dia, apoios à infância e aos mais desfavorecidos são áreas de intervenção quase exclusiva de comunidades religiosas, sem ligação ao Santuário. De acordo com a Comissão Diocesana Justiça e Paz, há 1 300 famílias em situação de pobreza, na área geográfica da diocese Leiria-Fátima. A irmã Maria dos Anjos conhece, pelo menos, 30 famílias sem recursos para uma vida digna, na zona de Fátima. «Ando no terreno», justifica.

Professora de Educação Moral e Religiosa Católica no Centro de Estudos de Fátima, coordena o clube de solidariedade daquela escola. «Há dois tipos de pobreza: a dos que conseguem levantar a cabeça com apoio e os que não dão um passo em frente, mesmo ajudados. Falta muita instrução, também», resume. Ela mobiliza vontades, recolhe donativos, sobressalta os alunos, arregimenta-os para as suas causas.
«Para mim, são todos seres humanos», diz.
E para o Santuário, mesmo ali ao lado? «Eles ajudam, não podem é bradar muito aos céus, porque toda a gente lhes bate à porta», defende Maria dos Anjos. No ano de 2005, o último de que há registos, o Santuário de Fátima concedeu ofertas de quase 700 mil euros, sem especificar. Os proveitos, esses, foram superiores a 8,7 milhões de euros. «Não se peça ao Santuário que substitua os poderes públicos, argumenta Natálio Reis, agradecido à Reitoria pelo apoio anual para pequenas obras que, em 2006, rondou os 43 mil euros. «Num orçamento de 500 mil, bem falta faz.» Se o desenvolvimento tarda, o crescimento manda. Fátima é o retrato de um Portugal pequenino que arrebitou desmesuradamente. Não faltam as inevitáveis rotundas, o urbanismo desgovernado e típico do País pimba, as lojas, hotéis e restaurantes de gosto e arquitectura duvidosos. Mas não só. Ainda recentemente, a Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica fechou uma dezena de estabelecimentos, em Fátima: três hotéis, cinco restaurantes e uma padaria. Valham o Tia Alice, o Retiro dos Caçadores e a Fandanguita, nessa tarefa de elevar aos céus da boca e não só a gastronomia típica da região. A imagem que Francisco Vieira tem da zona mais comercial de Fátima é a de uma feira, «para pior». Para o administrador da Sociedade de Reabilitação Urbana da Cova da Iria, «o investimento público não pode andar toda a vida a corrigir erros privados». Ali, o desarranjo estético fez escola e as tentativas para mudar mentalidades pregam no deserto. «O próprio Santuário deixou-se ficar na sua ilha e esqueceu-se de que este espaço exterior também o condiciona.» Para já, existem 20 milhões de euros para investir na duplicação da avenida central da Cova da Iria e no acesso à nova basílica, cujo túnel será a única obra paga na totalidade pelo Santuário. Outros projectos, os tais que poderiam mudar a face de Fátima, «dependem da iniciativa privada», aparições que tardam.

Com o 13 de Maio à vista, os comerciantes vão fazendo o exercício que mais apreciam: esfregar as mãos. Um gesto repetido mais amiúde, sobretudo desde que o Santuário decidiu tentar esticar eventos e celebrações ao longo do ano, agora que importa fazer render a sazonabilidade e cativar, entre outros, o crescente interesse dos turistas de Leste, «libertados do regime materialista e ateu».
Carlos Baptista, da Associação Empresarial de Ourém, faz o que pode para disfarçar a má imagem do comércio. Já alertou, vezes sem conta, os lojistas que teimam em «pôr tudo ao molho e fé em Deus», nos passeios. Mas a julgar pela amostra, santos da casa não fazem milagres.
O que, verdadeiramente, preocupa quem tem um ramo de negócio na zona mais comercial de Fátima é a mendicidade. Ou, como diz Albino Frazão, 68 anos, dono de uma agência de viagens, «essas autênticas empresas de pedintes que para aí andam». Em assembleia de freguesia, ficou registado em acta o seu protesto contra «o abuso de menores». Mas ele não quis ser tão alarmista. Referia-se, apenas, «a essas crianças ciganas obrigadas a pedinchar». Albino diz que Fátima é, ao fim-de-semana, um corrupio de indigentes, oportunistas e criminosos, vindos de Lisboa e Porto, embora a chegada da GNR tenha sido «dissuasora». A PSP não se conforma: «Esta é uma cidade especial, já tínhamos o esquema montado. Com a nossa saída, a criminalidade vai aumentar», avisa Rui Soares, da força policial apeada. Uma coisa é certa: Albino Frazão vê a sua vida andar para trás se não se tomarem medidas drásticas. «Qualquer dia vamos ter de pagar para termos a nossa terra limpa», crê, pouco disposto a partilhar nichos de mercado com misérias, agora que se vive o apogeu de Fátima, em matéria de fé, devoção e companhia limitada. «Não somos vendilhões do templo, somos servidores do templo. Os peregrinos buscam satisfação espiritual, mas trazem o corpo que tem fome e desejos. Nós estamos cá para satisfazê-los.» António Reis, 72 anos, não diria melhor. Mas, para o proprietário de uma das barraquinhas alugadas pelo Santuário, o ano do euro é que foi mesmo o ano... de ouro. «As pessoas faziam mal as contas e ganhou-se muito dinheiro», recorda, com um sorriso nos lábios. Se quisesse fazer fortuna, o arquitecto António Ferreira conhecia a receita: tinha vendido uma data de lojas para santos, no Espaço Fatimae. «Antes de chegar ao telhado, estava rico.» Mesmo contra invejas, ameaças e desconfianças, preferiu abrir a porta do centro comercial, do qual é gestor, a outras áreas de negócio e actividades culturais e artísticas gratuitas, da dança aos coros, passando por exposições, concertos e lançamentos de livros. «Se o tema não for muito político nem daqueles abaixo da cintura, sei que passa», frisa. A população de Fátima, porém, não adere, «são mais os de fora». Ele tem paciência: «Um camponês não semeia hoje para colher amanhã. Tem de tratar bem a terra, regá-la. Mudar as mentalidades é trabalho para uma geração.»

A quem o diz!, atiraria, se o ouvisse, Andreia Pires, 30 anos, professora de Expressão Dramática e coordenadora do clube de teatro do Centro de Estudos de Fátima. Do que ela se foi lembrar! Numa terra em que a pressão religiosa «se faz sentir», Andreia quis ver até onde a arte e a cultura podem conviver com a geografia social mais conservadora. Vai daí, encenou com os seus alunos, dos 14 aos 18 anos, a peça Nunca Nada de Ninguém, de Luísa Costa Gomes. Temas? Aborto, a sexualidade da mulher, outros valores. «Os jovens foram os primeiros a questionar-se, mas depois ficaram fascinados com a possibilidade de dar a volta ao texto.» A peça foi levada à cena em Ourém. Agora, vem aí a prova de fogo, em Fátima: «Sei o que vai acontecer. A comunidade vai ver, mas reservar a opinião para si.» Com os alunos, ela espera ir mais além: «Quero que tenham sensibilidade para a arte, que pensem pela própria cabeça e alarguem horizontes. Ensiná-los a não serem zombies e amorfos, atirados em massa para o futebol, as novelas e coisas assim.»  
Ainda haverá milagres em Fátima?