quinta-feira, fevereiro 27, 2025

«No Tempo dos Super-Heróis», Inês Lampreia

 

Editora Urutau, 2024
Inês Lampreia, foto Editora Urutau
Mais tarde, talvez não muito mais tarde, exponha por aqui alguma manifestação de interesse sobre este artigo de leitor em que falo da Inês. Agora, neste momento, não o farei porque perderia todo o impacto que este livro teve em mim. Uma série notável de contos de uma autora com uma grande maturidade estilística e literária e talvez mais conhecida fora do país do que por cá. Talvez seja melhor transcrever aqui a apresentação que o site do Festival de Literatura de Copenhague publicou sobre Inês Lampreia, obviando eventuais incorrecções ou omissões: 

«Escreve ficção e prosa poética. Ganhou o Prémio Casa do Alentejo em ficção curta em 2012. Foi publicado pelas Edições Pasárgada, Centro Mário Cláudio e em várias revistas literárias em diferentes países. Atualmente, escreve mensalmente "Crónicas Pós-Normalidade" para as notícias culturais portuguesas da Coffeepaste. Concebe e desenvolve workshops e projetos com métodos alternativos de ensino nas áreas da poesia visual, códigos de linguagem e escrita criativa, atividades que tem vindo a desenvolver nos últimos quinze anos em instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian. É também uma das escritoras do projeto Young Writers Lab, um laboratório colaborativo internacional para escritores e estudantes (Suécia).»

Para além de Professora na Escola Superior de dança (IPL) é mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE. Desde março de 2019, é diretora de comunicação da Materiais Diversos e, desde 2023, colaboradora em comunicação editorial na Culturgest. Coordenou a comunicação da Agência 25 (2019-2021), da exposição Festa. Fúria. Femina. - Obras da Coleção FLAD (2020) e do Ciclo de Cinema Outsiders (2021). Eis o resumo do que li sobre Inês Lampreia.

Poder-se-ia dizer mais do currículo de Inês Lampreia, mas o interesse principal que me move a escrever este artigo é este seu último livro «No Tempo dos Super-Heróis» que me veio ter às mãos por pura coincidência, ou acaso necessário, diria. É um livro de contos que se interligam não obrigatoriamente de acordo com uma cronologia de vida, mas de situações de um kairos sempre presente: os momentos oportunos, aquele em que tudo aconteceu, acontece, acontecerá possivelmente numa espécie de ucronia de todas as possibilidades, de todos os «ses» que a autora constrói, nem que seja nas nuvens que perpassam pelos contos, mensagem que é comunicada de geração a geração como uma linha inquebrável de compreensão das diferenças que o tempo trás com ele. Uma nuvem onde encontrar um amor como destino incontornável, imprevisível, leve ou violento, como se pode caracterizar a escrita de Inês Lampreia. Não será coincidência que um dos melhores contos que li de Inês Lampreia, ausente nesta colectânea,  tenha sido titulado de «Amor Fati», o que sempre acompanhou Nietzsche até ao seu fim.

O livro é, igualmente, um conjunto de memórias que se mostram sólidas e que o espaço e o tempo não apagam. A autora busca-as com orgulho, por vezes de uma forma austera e apaixonada para com o Alentejo, rasgada na escrita desenhada por uma revolta que socialmente aquela região sofreu para com a discricionaridade e violência das chamadas elites tão brutais, quanto ignorantes, mas que o poder ditatorial lhes mantinha o sossego de uma sublevação subalterna sempre em equação. Inês Lampreia não esquece os que orgulhosamente não obedeciam e segue registando, nas brumas de arquivos orais e que lhe permanecem vivas, como estes contos comprovam. O orgulho da terra dos antepassados está bem presente aqui, sem laivos de saudosismo ou de qualquer forma neo-realista que poderemos erradamente supor, mas de um outro espaço já em transformação nos anos 80 e 90 do século XX, o dos Super-Heróis, de uma juventude já urbanizada que não se compadece com uma vida confinada, esquecida, vista como pouco provável e que assiste, junto com os mais velhos da sua geração, a uma reconfortada viragem para a denominada normalidade social dirigida pelos possidentes. A memória que a autora nos trás aqui já não é a memória como História, mas uma memória cultural revisitada, recomposta com novos valores sociais e mentais. É isto que dá uma força incontornável ao livro, juntando-lhe uma escrita de adjectivos contidos ou contrastantes, verosímeis, como um canto pueril de um pavão ou um violento «puta de miséria!». É neste contraste, nesta passagem da suavidade, da beleza das descrições pessoais e naturais, de um amor não contido para a mais pura da revolta que se move esta colectânea notável. É impossível, no processo de leitura de «No tempo dos Super-Heróis», não nos sentirmos levados por essa brandura, sem que sintamos uns minutos depois a perturbação existente num trecho de um conto. Isto não é para todos, o que demonstra uma maturidade na escrita só conseguida por quem entende a escrita com real prazer diário.

O conto que lhe deu o prémio Casa do Alentejo em 2011, «Cinco dedos de Cortiça» abre a colectânea e nota-se de imediato o arrojo literário de Inês Lampreia devido ao dois registos literários utilizados no passado e no presente e a ausência de quem se ama no caminho sinuoso de uma solidão passada entre a casa e um centro de dia, esses lugares transformados em locais de infantilização lenta sobre a dignidade que resta nos velhos; no conto seguinte em «Encontra-me nas Nuvens», já referido com a possível subtileza atrás, reparamos numa constante que a autora impregna em vários outros contos como se fossem «remakes» de um mesmo tema: a nuvem, material etéreo, esse fumo denso, como portadora de acasos e magia única. Se temos a capacidade de nos espantar com todos os contos de «No tempo dos Super-Heróis» é, contudo, em «Retorno» que a força da escrita de Inês Lampreia se revela, ancorada numa geração que foi obrigada a emigrar, por circunstâncias políticas sombrias e que ainda não desapareceu por completo; neste caso, uma personagem, Filipa, que se divide em completar o trabalho de doutoramento numa universidade em Paris e a possibilidade de voltar. A opressão íntima da resolução de voltar para Portugal na flor da idade é bem descrita pelo absurdo de ser uma resolução «para toda a vida», sem que se note o mínimo lamento em qualquer das duas hipóteses que Filipa terá de escolher. 

Há, todavia, em «Tudo Acontece em Setembro», que não deixa de ser uma reconstituição notável dos anos 50 e da possibilidade de resistência à ditadura, uma viagem à cultura portuguesa que eu não quero deixar passar chamando este trecho, embora avisando-vos que o conto deve ser lido no seu todo:

«(...) A educação parecia um ditame da Idade Média. Embora se aprendesse muito, toda a filosofia e a história era emparedada pelo controlo do regime nacionalista e ideológico. Este saudosismo típico do português tem raízes longínquas, meu amigo, e eu observava novas gerações a perpetrarem-no. O suposto grande império colonial português, a religião e as suas tradições, o apego à terra, não pelo realismo, mas pela tradição, dava azo a que se mantivesse uma mentalidade mesquinha, pequena, conservadora e entrópica. De resto, voltámos a ver o mesmo nos anos 1990, num formato ligeiramente renovado e mais contemporâneo, já em democracia. Não lhe parece? (...)» (pág.119) 

Aqui numas pequenas linhas Inês Lampreia traduz a cultura portuguesa como um conjunto de tradições inventadas descritas por um Hobsbawm e das comunidades imaginadas expostas por Stuart Hall em todas as características das culturas nacionais e, em particular, a de uma cultura portuguesa assente num império colonial e na sua contínua autojustificação como uma das maiores mentiras que de geração em geração foram sendo construídas. Nestes pequenos diálogos de «Tudo Acontece em Setembro» Inês Lampreia faz ruir todos estes conceitos mentais que nos habituámos a ouvir anos a fio.  

Foi com um prazer inesperado que li a ironia arrasadora estampada em «Dois Dedos de Solidão» sobre o vácuo de uma vida focada no sucesso de uma curadora, sem que isso afectasse minimamente a continuidade do seu trabalho, da sua vida pessoal, ou na criação de frases sem sentido aos jornalistas que a invectivavam sobre os seus novos trabalhos. Temo, no entanto, que o facto de ter feito sobressair um ou outro conto que aqui vos trouxe apague de algum modo a qualidade global de «No Tempo dos Super-Heróis». Deve ser lido com  urgência.

Nota: Pode ser encontrado nas livrarias, embora a Livraria Snob, no meu caso, me tivesse enviado 2 dias depois, o que é obra nestas coisas! A Urutau, no seu site, também tem à venda o livro.