Penguin Clássicos, 2025. Introdução de David McDuff. Tradução de Ivan Figueiras
Ainda estou por perceber qual a razão que levou a editora, depois de declarar a protecção da propriedade intelectual e dos direitos de autor, a colocar-lhe um sub-título, até melhor explicação, completamente abusivo de «Romance do século XXI»!
Trata-se de uma distopia, de um livro inquietante, escrito em 1940, portanto antes dos conhecidos «1984», de Orwell e de «Fahrenheit 451» de Bradbury, mas após os incontornáveis «Admirável Mundo Novo», de Huxley, «Nós», de Zamiatine ou as obras futuristas de H.G.Wells, entre muitos outros que compreenderam o período entre as duas guerras mundiais, o que se deverá compreender facilmente com a ascensão do nazismo, do fascismo e dos processos de Moscovo liderados por Estaline que desvirtuaram a tentativa libertária da revolução russa.
É um livro notável que nos remete para a construção de um totalitarismo que poderia ter saído da II Guerra Mundial. Mesmo com o nazi-fascismo derrotado (repete-se que «Kallocaína», foi escrito em 1940, ano de todas as vitórias alemãs sobre os aliados e o início da invasão da URSS) no final da guerra a tentativa de controlo individual pelos governos e pelos serviços secretos democráticos era uma realidade próxima que a Guerra Fria veio acentuar e tornar-se quer uma realidade «democrática», quer «burocrática».
A kallocaína é um soro da verdade que quando injectado num inimigo capturado, preso, suspeito de resistência contra o Estado, ou o que quer que seja, - Kall, o inventor, usa-o na mulher para se certificar que não tem uma relação sexual com um seu colega resistente e que é condenado à morte, denunciado por ele - os fazem dizer toda a verdade contra a sua vontade e denunciar todos os seus companheiros, organismos oponentes e todos os que moral e eticamente se separam das directrizes do Estado. Uma tortura limpa, portanto. Sem sangue ou violências escusadas e cansativas. Talvez o que Ellon Musk nos reserva com o seu programa Neuralink que adivinha através da computação e IA o pensamento dos simples mortais como nós que têm veleidades a, imaginem, pensar criticamente! Não que houvessem tentativas anteriores como a administração do LSD e outras drogas químicas pela CIA, ditaduras sul-americanas e serviços secretos do leste a prisioneiros, mas a questão era e foi sempre jurídica: não se aceitavam confissões sob o efeito comprovado dessas drogas. Agora pergunto-vos: haverá algum travão a que esse tipo de tortura se torne juridicamente aceite nos EUA de Trump? Bem me parecia que a vossa resposta não foi tão imediata quanto se pretendia, se me permitem a ousadia de tentar adivinhá-la.
Karin Boye previu tudo isto, tal como o Estado todo-poderoso totalitário, a alienação total das massas, a credulidade em fés messiânicas, a violência da denúncia de colegas de trabalho ou de membros da família, de comportamentos considerados desviantes, o estado de guerra permanente contra inimigos imaginários ou como forma de fortalecer os Estados, como aliás se passa hoje. Bem o sabemos e não será necessário procurar muitos exemplos. «Kallocaína» também prevê a Resistência. Ela durará enquanto o Estado totalitário existir com todas as suas violências. Isso será a única certeza que Karin Boye teve e que aqueles que conhecem a luta contra a discricionaridade o sabem igualmente. A autora assistiu, em Berlim e em 1938, a um comício em que o orador era Göering. A alienação e o ethos de morte era de tal ordem que, no fim, levantou o braço em saudação nazi, sabendo que correria o risco de ser assassinada pela multidão se não o fizesse. Suicidou-se na Suécia em 1941, o que me leva a pensar que a maioria dos autores distópicos acabam na sua maioria assim. Ou por suicídio, ou por doenças evitáveis devido a abusos de toda a ordem. Ou presos.
«(...) Nestas situações, vai ser bom ter a minha Kallocaína à disposição. Com ela, poder-se-á prever e prevenir muitas atrocidades que agora acontecem de um momento para o outro sem que as tenhamos visto chegar...
- Desde que apanhemos as pessoas certas. O que também não é assim tão fácil. Não está a incinuar que toda a gente deva ser examinada, pois não?
- Porque não? Porque não toda a gente? Eu sei que é um sonho futurista, mas ainda assim! Prevejo um tempo em que ninguém será colocado num posto sem primeiro ser submetido a um teste de Kallocaína, de forma tão natural como agora se é submetido aos testes psicotécnicos. Assim, serão do conhecimento público não só a competência profissional da pessoa em questão, como também o seu valor como camarada soldado. Eu imaginaria até um exame anual de Kallocaína obrigatório para cada camarada soldado...
- Os seus planos para o futuro não são nada modestos. - Mas seria necessário um dispositivo demasiado grande.
- Tem toda a razão, chefe, seria necessário um dispositivo demasiado grande. Exigiria uma grande entidade inteiramente nova com uma multidão de funcionários, todos eles retirados da presente organização militar e de produção. (...)» (págs.114,115, ee)