quarta-feira, fevereiro 12, 2025

«A Flor Cadáver e Outros Poemas», Jorge Sousa Braga

 

Assírio & Alvim, 2024
O último livro de poemas de Jorge Sousa Braga. Ao abri-lo, as epígrafes esclarecedoras de Samuel Beckett,
«When you're in the shit up to your neck,
there's nothing left to do but sing.»
e de Artaud,
«Là où ça sent la merde ça sent l'être.»

O jogo da poesia está aberto e o tema aponta-nos à leitura e ao pensamento absorto nos excrementos de que somos feitos e que reconhecemos a toda (toda, sem excepção) a actividade humana. Queira ou não se queira a merda acompanha-nos, omnipresente, e tenho dúvidas se igualmente omnisciente. Porque omnipotente já o é, embora eu não explique aqui o porquê. Basta olhar em volta. De resto, os profetas são chamados para aqui: desde um profeta que pedia para não utilizar a mão direita quando se fizessem as necessidades, ou outro, o inenarrável S. Paulo que, em epístola, clamava que o caminho até às estrelas está pejado de merda ou, o mais provável, o facto comprovado que Jesus Cristo comia e bebia e não defecava. Porque defecar menoriza quem o pratica. Ou transformar coprólitos humanos em alimentação como prática de mortificação por Santa Maria de Alacoque, beatificada por Bento XVI!
Lembro-me, em 1969, miúdo, no café onde acompanhava o meu pai, toda a gente se rir de um professor do Técnico (não direi o nome, mas o caso foi conhecido e comentado em anedotário) que duvidava da alunagem dos americanos, em Julho, porque a nave era pequena demais para suportar os excrementos dos astronautas; tal como na semana que passou li, num diário de referência, que um professor canadiano de uma empresa suíça (seriíssimos, portanto) informava o excelso público da descoberta de pílulas de excrementos humanos saudáveis, para combater as infecções intestinais. O excremento salva-nos tal como o que é transformado em objecto poético. Jorge Sousa Braga escreve, logo a abrir o livro, um texto lindíssimo sobre as propriedades da Flor Cadáver, Titan Arum, e avisa-nos, num dos seus Haikus, cauto e conhecedor do que é capaz a humanidade que:
«Nem todos
são capazes de ler
a merda» 
(pág.22)

De resto, deixo-vos não sem alguma comoção de quem já pouco espera da única certeza (pouco cartesiana) que temos, com um poema brilhante, De(composição), de Jorge Sousa Braga difícil de esquecer por quem leu este livro notável:

«Quando o sangue deixa de circular sobrevém o frio. Depois instala-se o rigor mortis primeiro nas pálpebras no queixo e no pescoço. Os músculos ficam rígidos e as articulações presas. Posteriormente as bactérias intestinais entram em acção e a pele destaca-se dos tecidos subjacentes. O corpo começa a libertar gases e os tecidos a liquefazerem-se. É a vez das moscas e das suas larvas e de outros predadores intervirem. Até que restam apenas os ossos...

Algures durante este processo uma borboleta abandona o cadáver, sacode as asas brancas e desaparece entre as folhas das árvores.»
(pág.44)

Será esta a razão pela qual ainda mantenho dúvidas sobre a incineração?