Língua Morta, Setembro de 2024
Um dos maiores enxertos de porrada velha que vi dar à Psicanálise e a Freud. A primeira que li, já lá vão anos muitos e à qual aderi completamente, foi a leitura ainda muito incipiente, porque quase adolescente, do «Anti-Édipo» de Deleuze e Guattari. Mas deixem a pancadaria em paz e desculpem o vernáculo; esta esfrega é feita com uma elegância e mestria raros num livro que se debruça sobre a matéria de que são feitos o sono e o sonho. É como se a poesia de Herberto Helder se aliasse a um monge japonês de artes marciais personificado num filme de Tarantino. Paulo Bugalho lê-se com agrado e entusiasmo crescentes, acreditem.
Do sono REM (Rapid Eye Movements) e ao NREM durante o sono, até aos variados tipos de sonhos que temos, lembrando-nos ou não deles (ai a culpa! ai o charuto!, ai o triângulo papá e a mamã, 'mais eu'!, como analisaria o doutor austríaco) até à literatura, ao cinema, à filosofia e à história clássica, entramos como convidados para um livro que educadamente nos demonstra a possibilidade de o sonho ser parte integrante e tangível de nós próprios, mesmo com a presença incontornável do onírico. E isto por quem sabe muito bem do que fala e que o leitor pressente, pois claro. Não é para todos, porque Paulo Bugalho sabe escrever bem, afastando-se da parafernália académica. Isso só o faz quem sabe, quem pode, quem se está para as tintas para o escudo protector universitário, comum nos dias de hoje e que muitas vezes é usado para esconder fragilidades várias.
E sim, entre muitos outros vossos conhecidos e que vos acompanham, há Rilke, Allen, Zweig, Mann, Helder, Cesariny, Tsvietaieva (dela eu só conhecia «O Poeta e o Tempo», publicado pela Hiena), Tolstoi, Montaigne, Shakespeare, Proust (com uma referência privada às madalenas), Ariosto, Guimarães Rosa. Facto que vos trago aqui é a estória que é descrita sobre a relação que adivinharíamos entusiasmante entre Freud e os Surrealistas cujas artes segui com interesse e que se apoiaram nas teses do monstro da psicanálise: deram-se mal, como é mais que óbvio. A coisa acabou em divórcio entre Breton e mais tarde com Dali. Não deu a junção do automatismo da escrita poética com a análise doutoral. E aparecem todos juntos? É evidente que não, pelas razões que já apresentei atrás que, repito-o, são chamados por Paulo Bugalho com critério e em capítulos que demonstram uma síntese notável do autor. Deixo-vos, só para levantar o véu, com um pequeno trecho do capítulo «O Melhor Duplo» que deu o título ao livro:
«A verdade última, leitor, é que, para aquele que somos na vigília, o futuro do sonho é esquecimento. Ficamos alarmados com as imagens que nos chegam ao acordar, confusos com a certeira bizarria dessas histórias, fascinados com esse descarnar da ligação entre o mundo mental e a existência terrena, entre a vida que é vivida e a vida que é pensada. Colocamos o sonho no altar, adoramo-lo como a um deus que nós próprios fôssemos, imaginamos a nossa figura multiplicada por dimensões incalculáveis, expandida e nessa expansão tornada por completo, amavelmente, indecifrável. (...)» Queremos uma resposta? Pois é: o problema (se é que o chega a ser) é que temos de contar com a amnésia, diz Paulo Bugalho. E essa amnésia, frustrante porque impossível e óbvia de ser estudada, é que «das oito horas de sono que compõem uma noite, quase cinco contêm sonhos. Contudo, o total de que um bom sonhador se lembrará num ano será apenas de dezoito horas.»
Que este livro vos dê bons sonos, sonhos e, já agora, boas vigílias.
alc