domingo, julho 16, 2023

«Berlim Alexander-Platz», Alfred Döblin

 

D. Quixote, 4ª ed. 2020 (1ªed. 1992). Trad.: Sara e Teresa Seruya. Prefácio: Teresa Seruya
O que Alfred Döblin poderia fazer? Alemão, falecido em 1957, escreveu este romance épico, segundo as suas palavras, em 1929, ano de todos os perigos não só na Alemanha humilhada por Versalhes, mas para todo o mundo que já adivinha novo conflito de lesa-humanidade. Este romance é não só épico, mas inigualável. Em dois posfácios publicados nesta edição e escritos, um, em 1932, outro, em 1955, ele repete em ambos a intriga que foi compará-lo a Ulisses de Joyce, que só veio a conhecer já um quarto do livro estava escrito. Negou sempre essa influência, mesmo que o tivesse elogiado e afirmasse que foi uma lufada de ar fresco na literatura. Mas o que é estranho é que, quer a prefaciadora e tradutora do livro, quer por arrastamento a editora, não o entendem assim e pespegam, inclusive na badana, a tal influência que o autor nega! Como poderia contestar Alfred Döblin? O mesmo para integrar «Berlim Alexander-Platz», à força, no movimento expressionista, ou futurista. Por que não dadaísta, devido às múltiplas onomatopeias utilizadas por Döblin no final de certos períodos? E, talvez o mais acertado, não o colocar em nenhum movimento, a não ser a época em que foi escrito, tal como aventa o próprio autor num dos posfácios já citados? Por vezes, os prefácios tornam-se áridos e complicam mais do que esclarecem, salvo o nome do próprio prefaciador, embora com felizes excepções, acrescente-se. O que se sabe, sem sombra de dúvida, é que «Berlim Alexander-Platz» foi dos livros que os nazis das SA queimaram em grandes fogueiras regeneradoras contra a «arte degenerada» logo em 1935. O que se sabe igualmente é que este é um livro arrebatador cuja leitura será necessária para compreender o século XX e ao período entre as duas guerras mundiais. Os «roaring twenties», nada tinham de maravilhosos nos anos 20 berlinenses. Franz Biberkopf está aí para nos provar no decorrer dos acontecimentos deste livro espantoso.

Franz Biberkopf é a personagem que dá vida a «Berlim Alexander-Platz». Passados 5 anos na prisão de Tenger, por ofensas corporais graves de que resultou a morte da sua companheira Ilda, chulo, assaltante, biscateiro, desempregado, traído duas vezes pelos comparsas, sem um braço devido a contas por saldar, por uns tempos usando a camisa castanha e a suástica, vive em plena capital da Alemanha a lamber ainda as feridas da derrota e da humilhação imposta pelos países da Entente. Na página 509, Döblin apresenta-nos, já no dealbar da sua existência, Biberkopf desta maneira: 

«Quem é este que aqui está na Alexanderstrasse, mexendo vagarosamente uma perna atrás da outra? O seu nome é Franz Biberkopf, vocês já sabem o que andou a aprontar. Chulo, delinquente perigoso, pobre diabo, um homem arruinado, é agora a vez dele. Malditos punhos o espancaram! Terrível punho o agarrou! Os outros punhos espancaram e largaram-no, ficou uma ferida, ficou ele, mais nada, a ferida veio a sarar, Franz ficou o que era e continuou o seu caminho. Agora o punho não despega, o punho é incrivelmente grande, destrói o corpo e na alma, Franz caminha a passos curtos e apercebe-se: a minha vida já não é minha. Não sei o que fazer pelo meu lado, mas Franz Biberkopf está liquidado de vez.»

Döblin conheceu bem Berlim, principalmente os seus bas-fond. Médico, muitas vezes em reformatórios e penitenciárias, chamava à cidade a sua Babilónia, a grande prostituta, indiferente e paradoxalmente castigadora, rancorosa, sempre a ceifar vidas de gadanha pronta. São várias as vezes que o autor recorre a esta imagem, a esta metáfora, incluindo o recurso bíblico, nomeadamente a referência a Job e a Ester. No entanto, coloca dois anjos ao lado de Biberkopf. Os seus nomes são Sarug e Terah que mais tarde o abandonam, deixando às vicissitudes da vida terrena o fim de Franz, deixando que o ódio puro seja mais forte que o celeste arbítrio ou à vontade e solidariedade dos seus amigos próximos como a sua amante Mieze (assassinada mais tarde por Reinhold), Eva ou Herbert. O maravilhoso texto onde se encontra o diálogo entre os anjos é este: 

«O que é que tu achas, ó Terah, que ia acontecer se se deixasse este homem entregue a si próprio, se o deixássemos ficar para aqui e ele fosse apanhado?» Sarug: «No fundo não havia de fazer grande diferença, por mim acho que vão apanhá-lo de qualquer maneira, é inevitável. Ele pôs-se a olhar para o edifício vermelho além, e tem razão, que dentro de semanas já lá está atrás das grades.» Terah: «Então achas que, a bem dizer, nós somos supérfluos?» Sarug: «Um pedaço, acho que sim - já que não nos é permitido tirá-lo por completo daqui.» Terah: « Ainda és uma criança, Sarug, só andas a ver isto há um par de milénios. E se levarmos o homem daqui e o mudarmos para outro lado, para outra existência, terá ele feito tudo o que podia fazer aqui? É que, em 1000 seres e vidas, como deves saber, registam-se 700, não, 900 fracassos.(...)» (pág.505 e seguintes)

Perante a atonia social de que padece Berlim e a Europa (em Portugal continuávamos pobretes e alegretes) entre as duas guerras e com as graves convulsões económicas capitalistas que desembocou na crise de 1929 a 35, era necessário resistência. Não só política, contra os fascismos e a claudicação social-democrata e liberal perante estes, mas também pessoal que levasse os indivíduos a ultrapassar as restrições económicas e materiais e, tão importante como aquelas, a postura ética que em tempos de miséria generalizada pode ficar a dever muito às consciências dos «homens de bem». Biberkopf não é decididamente um deles. Ele procura uma postura jovial perante todas as crises:

«Todas as coisas, todas as coisas têm o seu tempo e todo o agir sob os céus tem a sua hora, todas as coisas têm o seu ano, nascer e morrer, plantar e exterminar o que se plantou, todas as coisas, todas as coisas têm o seu tempo, estrangular e curar, quebrar e construir, procurar e perder, o seu tempo, guardar e atirar fora o seu tempo, rasgar e coser, calar e falar. Todas as coisas têm o seu tempo. Por isso vejo que não há nada melhor do que ser jovial. Melhor do que ser jovial. Ser jovial, vamos lá a ser todos joviais. Não há nada melhor debaixo do Sol do que se rir e ser jovial.» (pág.445)

Vamos lá ser todos joviais. Mesmo que os tempos sejam tristes e se aproximem tempestades negras, sigamos de perto os conselhos de Franz Biberkopf.

António Luís Catarino