VS, Vasco Santos Editor, 2018 (1ª ed. Fenda,1989). Trad. Paula Castro e José Daniel Ribeiro. Design: João Bicker
Já falámos de Stig Dagerman e voltaremos certamente a falar dele neste blogue. É um autor impossível de contornar (haja quem!) e necessitamos de o (re)ler, num quadro de literatura, hoje, em que tudo é considerado como tal sem que haja um pensamento, uma ideia ou sequer uma escrita digna do seu nome. Stig Dagerman tem plasmado no que escreve uma suavidade tensa, uma raiva doce, paradoxalmente uma vida vivida com apego e paixão, mesmo que isto se refira a um suicida precoce, como todos os suicidas o são. Continua a ser um mistério à medida que o lemos e se o relermos, como é quase obrigatório fazê-lo, ainda o adensamos mais. Lê-lo é um exercício de inteligência e busca. Uma deriva entre lugares que provavelmente não existem, tal é a topografia de Dagerman.
«Bem estreito é o fio da navalha! Entre dois perigos me equilibro: de um lado ameaça-me a ávida boca do excesso, do outro a amargura da avareza que de si mesmo se alimenta. E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus actos, por isso tudo me pode ser desculpado. Mas este conhecimento não me basta. O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exactamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem reflectida do desespero. De facto, assim que o desespero me diz - «perde a esperança, o dia não passa de um momento de trevas entre duas noites», há uma falsa voz que me grita - «tem confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias.»
«A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau - agir como se todos os actos fossem defensáveis - deve ter ao menos a bondade de notar quando o consegue.
«É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.» (pág.17 e seguintes)
António Luís Catarino