Cavalo de Ferro, 11ª ed. 2014 (1ª edição, 1954)
Questiono-me por que razão iniciei a leitura deste livro, não por acaso um dos menos conhecidos de Ferreira de Castro por quem tenho verdadeira empatia. Além de ser um grande cultor da língua portuguesa tem um percurso pessoal que não me é indiferente. Sigo-o, embora não concorde com os epítetos com que mais tarde o vieram a tentar classificar, arrumando-o na estante do neo-realismo, tal como fizeram com Aquilino ou Redol. Muito sinceramente acredito que estes autores tenham ultrapassado essas marcas pela obra que apresentaram em vida e pelo exemplo que deram enquanto homens que não se conformaram com a ditadura fascista da Estado Novo e, antes, com a ditadura militar ou mesmo com o regime monárquico corrupto.
Tenho-me fixado, ultimamente, na literatura alemã e austríaca, embora com desvios para a francesa e suíça, querendo saber mais sobre o período entre as duas guerras. Não pelos manuais de História que já conheço relativamente, mas procurando subjectivamente as vivências pessoais dos que se encontravam nessa «grande época» de que falava Karl Kraus, ou na Berlim de Döblin e de Dagerman. Isso é o que me interessa ainda e que vou continuar a estudar. Só a literatura pode dar-nos essa visão. As personagens que a vivem ou a quem os autores lhes dão vida numa cadência de loucura que levou o mundo quase ao apocalipse. As coisas voltam a ser o que eram, infelizmente, e a humanidade parece que nada aprendeu.
Porquê, então, Ferreira de Castro com a sua «A Experiência»? Não creio que haja um motivo claro para uma pessoa escolher a leitura de uma obra, seja ela qual for, quando e onde for, e ainda por cima com este autor. Mas nem que fosse para intervalar o estudo que fazia, li-o. A narrativa é tão estranha, quanto subversiva para os anos 50. Penso que só o nome de Ferreira de Castro, com perfil nobelizável, evitou que este livro fosse parar às caves da censura. Mas não consigo deixar de comparar, embora seja um exercício pouco avisado, com a literatura do pós-guerra dos países europeus que a conheceram e que sofreram com ela. Não me canso de defender que as obras destes autores deviam ser lidos e estudados por estudantes do secundário até à universidade. Não só conheceríamos a nossa língua melhor, como acordaríamos para um Portugal que já não existe, mas que ainda permanece numa intangibilidade que nos confrange ainda hoje. Isto é tudo muito católico e a coisa permaneceu e permanecerá se não tivermos coragem de infringir as leis que nos querem reger. Toda a «experiência» que Ferreira de Castro nos descreve de um modo majestoso é a tentativa de erguer um asilo para órfãos, mas munido de uma prática pedagógica nova, ou seja, não repressiva, como era generalizada em todos os asilos, colégios internos e liceus onde os castigos corporais terríveis eram prática comum. Mas aqui trata-se somente de asilos para desvalidos. Enquanto a Europa, que Ferreira de Castro conhece bem, vive uma época de mudanças profundas de concepções educativas e políticas, aqui em Portugal esperamos por «experiências pedagógicas novas», vindas por pouquíssimos doutores de Coimbra (sempre ela!), que à espera de um qualquer mecenas ou benfeitor estariam dispostos a percorrer o caminho. A culpa católica existe logo no início da construção deste empreendimento: o filho de um abastado ricaço que fez fortuna em roças de S. Tomé e que se culpa por centenas de crianças mortas e tornadas órfãs, abandonadas à sua sorte, devido a uma epidemia que grassou na ilha e que a ignorou como colonialista consequente. O filho, igualmente colonialista, tenta redimir-se do mau nome do pai criando, na sua boa consciência burguesa de novo rico, um asilo na vila do pai. A coisa não dá, por imposição política e religiosa, que obriga aos velhos hábitos pedagógicos. O asilo vai à falência e as crianças que foram distribuídas por casas ricas em trabalho escravo, portanto não pago, acabaram ou no roubo e assassínio ou na prostituição na Babilónia lisboeta! A justiça condena-os a pesadas penas, mesmo que a argumentação de homens «bons», geralmente médicos e advogados ao lado dos pobres, fosse sustentada pelos ensinamentos de um Cristo primitivo! Cristo dos pobres contra o Cristo dos ricos e da igreja! É assim Portugal dos anos 50, tão diferente da efervescência, inclusive literária, de Europa do pós-guerra. E também dos seus marginais. Não vejo em nenhuma obra que li desses países e cuja época se passe entre as duas guerras ou no imediato pós-guerra os marginais com algum arrependimento ou sentimento de culpa por expropriarem os ricos, para outros ou para si próprios. A vida estava estabelecida pelas regras dos que dominavam, portanto as leis eram passíveis de serem quebradas, pela violência se necessário fosse. Neste livro, notável, de Ferreira de Castro, assalta-me a ideia da presença de uma narrativa firmada pela culpa e castigo, por quem, seja porque motivos circunstanciais fossem, enveredaram pela marginalidade. A sociedade que deve expiar os seus próprios monstros. Eis o que Portugal dos anos 50 em toda a sua tristeza. Um mundo fechado, lúgubre, com taras escondidas, um sistema prisional imundo e uma prostituição proibida, mas verificada sanitariamente pelos governos civis para segurança dos homens mais abastados. A miséria caseirinha em todo o seu esplendor.