Cotovia, 1999, Tradução de Ernesto Sampaio
Pascal Quignard apresenta-nos um livro admirável baseado em pequenas memórias, recados, agendas, impressões de uma patrícia romana, Apronenia Avitia, que viveu no estertor do Império entre 343 e 414. Nestes folios recolhidos em 1604 pelo francês Fr. Juret, em Orriam, Pascal Quignard segue o seu roteiro literário de pequenos fragmentos que formam um todo percetível. Consegue-o de uma maneira magistral.
Apronenia Avitia nasce em Roma em 343 e morre ao que se supõe aos 71 anos. Para alguma perplexidade de Pascal Quignard, Apronenia só muito por alto fala da queda do Império e da corrupção que lhe está inerente à vista de todos. As suas preocupações e registos são outros, embora ao que tudo indica tenha assistido aos cercos do chefe godo Alarico a Roma e se tenha refugiado numa das suas «villas» na Sicília também em devastação. Mas as suas impressões deixam-nos uma marca de uma época violenta e ao mesmo tempo terna, quase ingénua pela descoberta dos pequenos grandes prazeres do corpo, da sensibilidade pela natureza e também pela filosofia e pelo pensamento. Apronenia Avitia casa-se três vezes e tem sete filhos que lhe sobreviveram. Não escreve quase nada do seu primeiro marido embora soubéssemos que era rico e, como tal, patrício, tenha vivido com ele quase trinta anos e tenha tido os seus filhos com ele. Herdou e enviuvou duas vezes mais aumentando assim o seu pecúlio e riqueza não sem sobressaltos devido às expropriações cristãs de terrenos de patrícios pagãos que se dão em toda a Península Itálica, a partir do Édito de Milão e principalmente a partir de Teodósio. O cristianismo impunha-se com conversões oportunas desses patrícios, os seus «clientes» e juntamente com os escravos. Mais velha que Agostinho e Jerónimo vê sobrepor-se aos deuses romanos e ao pensamento a que hoje chamamos «clássico», a teologia cristã. Não aderiu, nem o seu círculo próximo de amigos e de senadores, ao cristianismo, embora amigas íntimas e alguns familiares por motivos políticos e de propriedade, o tenham feito.
Quando enviuvou pela primeira vez, uma amiga cristã de Apronenia, Anícia Proba, envia uma carta ao bispo Nasébio sobre os conselhos que a igreja lhe teria para dar quando aquela se preparava para se casar novamente. Conhecemos a carta, de 392, que lhe foi endereçada pelo bispo e ignorada olimpicamente pela patrícia:
«Tentarás reparar, na medida do possível, uma inocência manchada pelo prazer e pela idade, uma candura que o tempo, a maternidade e a sensualidade macularam. Pelo menos, procurarás restaurar em ti a nostalgia desse estado. Porás todo o cuidado em evitar armadilhas a que te expõem Roma, a comida, o gosto pelos livros profanos, os cuidados corporais, a riqueza, a proximidade da velhice e a autocomplacência que lhe é própria, a música e todas as artes. Purifica-te! Toma consciência da promiscuidade matrimonial! Deixa-te tocar pelo estado de Nosso Senhor, as virtudes da pobreza, o desprezo por esta terra e pela sociedade dos homens; deixa-te tocar pelo amor do Céu!» Apronenia não se deixou tocar, evidentemente.
Em 396 dá-se a separação do Império e, no Ocidente, começa-se a fúria destrutiva dos antigos deuses, pensamentos e conhecimentos pagãos. As estátuas eram destruídas e a expropriações revertiam para o espólio já enorme da igreja cristã. As violências sobre o «partido» pagão atingiam igualmente um ponto de não retorno. Volusianus, um senador do grupo do Monte Caelius e vagamente familiar de Apronenia enviou-lhe esta carta desesperada em 408, reproduzindo estas mesmas ideias (também por carta) por todo o Império. Dizia ele: «Desde que o cristianismo triunfara a vida perdera a alegria, as cidades, as vias, os templos, os teatros, as termas, deixadas ao abandono, alteravam-se e caíam lentamente aos bocados. Antes dos cristãos tomarem o poder, os livros eram mais bem escritos, a vida mais tranquila e feliz, mais radiosas e mais desejáveis, as moradias maiores e mais esplêndidas, a alegria mais contagiosa, a luz mais cintilante, os sons mais puros, o cheiro dos sexos mais exaltante e almiscarado; até as sardinhas e as salsichas grelhadas tinham outro sabor. desde o édito de Honório, desde que perdera os seus deuses, com os Godos sempre presentes, Roma ficou desolada; o vinho tinha sido transformado em sangue, o pão em fogo e cinzas; os cantos e as pantominas tinham sido substituídos pelos gritos dos torturados; arte já não havia: apenas ruínas. (...)»
Alguns apontamentos de Apronenia Avitia nos pequenos buxos de cera escritos com estiletes de prata:
XXI. Coisas que dão um sentimento de paz
Gosto dos ruídos dos carros de Roma.
Dos banhos de sol nos terraços, ao entardecer.
Do sono pesado de um homem que gozou.
Dos colchões do Nilo.
Das estrelas, quando a madrugada pouco a pouco as apaga.
Detesto os velhos, ou pelo menos os que parecem sempre acompanhados pela morte.
XXXI. Descoberta
Não gosto de fazer amor durante a primeira sesta.
LVII. Alegrias da aurora
Gosto da aurora, das sombras roídas pela claridade.
Os telhados do parque tornam-se pouco a pouco visíveis.
O odor da noite, do suor e dos prazeres de que nos recordamos aos poucos, à medida que nos vamos despindo deles. Pouco a pouco a aparência retorna aos corpos, enquanto os vamos escondendo e maquilhando.
A água fresca sobre os olhos e na garganta.
LVIII. Litania de Spurius Possidius Barca
(...) - Houve um tempo em que eu não existia e houve um tempo em que tu não existias. Haverá talvez um tempo em que eu deixe de existir e tu existas, ou talvez um tempo em que tu não existas e eu exista. Serão sem dúvida os tempos mais tristes. Depois haverá um tempo em que ambos já não existiremos e nunca mais voltaremos a existir.
Enquanto ele falava, Spatalé repunha azeite nas candeias. Eu acariciava-lhe com o dedo as costas da mão, que tremia.
LXI. A pobrezinha de Lucianus
(...) ''Eu sou Lalagé Asdiga'', disse. ''O mar corrói as costas e forma baías. Tenho a boca e as nádegas das porcas. Fui bela. O tempo é um deus de água, de falésias que desabam, de areia. Tudo nos empurra, nos arrasta para a morte. Há muito tempo que o frutos dispostos na canastra tinham perdido o viço e fui repudiada. Amava Quintus e nos meus sonhos, por vezes, ainda o desejo.''
LXXXII. Os sinais da felicidade
Tais são os sinais da felicidade: uma fortuna herdada.
Uma linguagem precisa, o acento de quem não tem acento.
Um parque variado, com muitas sombras, acidentado e profundo.
Um corpo robusto.
Amigos dissemelhantes, loquazes, bons leitores, mas também convivas indulgentes e um pouco grosseiros.
O rosto de um homem cujos olhos revelam todas as emoções, tal como um espelho do Oriente.
Um sono de cinco horas desde que não seja interrompido.
A companhia de um homem que goste do prazer, isto é, da delicadeza do prazer.
Nas vezes da morte, um susto comedido.
Tomar banho.
O uso da lira.
XCVII. Dito de Spurius Possidius Barca
Depois da morte de Spurius não tenho pensado em nada. esta manhã, lembrei-me de uma coisa que me disse antes de entrar na agonia e que me comoveu:
- Não há outra vida. Nunca mais nos veremos.
As lágrimas corriam-nos pela cara. Apertámos a mão.
CXX. Moléstias dos olhos.
(...) Publius diz:
- Uma espécie de poeira invisível cai do sol, cheia de átomos. Nada consegue livrar-nos dela. Mete-se-nos na vista e torna-se cada vez mais espessa até à noite da morte.
Publius acrescenta:
- Essa poeira chama-se poeira.
Cala-se, depois acrescenta ainda:
- Ou então o nome dela é tempo.
Volta a calar-se, para acrescentar de novo:
- Ou então terra.
Cala-se mais uma vez, e por fim diz:
- Ou então o nome dessa poeira é ainda e sempre poeira.
(...)
CXXXII. Coisas longas e coisas sem duração
Entre as coisas mais longas, acrescentaria a infância.
O arbusto do buxo.
Esperar por Aulus que está no gramático e já há uma hora que devia ter voltado.
A velhice.
A tartaruga do mar.
A morte daqueles que estão mortos.
A insónia.
A gralha.
Entre as coisas sem duração, não anotaste os deuses imortais e as obras irrepreensíveis.
Entre as coisas sem duração, o amor deve ser suprimido. Está para a espécie como o sexo ou as mamas que o acompanham e permitem a reprodução, mas não definem nada de propriamente humano.
A tradução de Ernesto Sampaio é uma mais valia considerável do livro.
António Luís Catarino