Joana Emídio Marques, Língua Morta, fevereiro de 2023
Uma antologia de textos publicados no «Observador» e escolhidos por Joana Emídio Marques para a publicação deste «Notícias do Bloqueio» título baseado num poema de Egito Gonçalves e de uma revista de poesia publicada entre 1957 e 1962 com a participação de nomes como Alexandre O'Neill, Carlos Drummond de Andrade, António Reis, o próprio Egito Gonçalves, João Ribeiro de Mello, Orlando Costa, Joaquim Namorado, entre muitos outros.
O próprio título escolhido para o livro muito bem escrito por Joana Emídio Marques dá conta do país que (ainda) temos no plano literário: algo rançoso, promíscuo, indiferente, narcísico no que o termo tem de pior. A autora não descura as críticas que endereça ao «meio». Elas são muitas e reconhecíveis. Verosímeis, mesmo para quem nunca ainda passou pelos meandros do compra e venda literários. Dos festivais, da «crítica», das embirrações, dos ódios de estimação, do desprezo pelos leitores a que votam a maioria de quem escreve e que sabe a receita para vender bem, embora se saiba à partida que não viverá só disso. Terá de fazer mais um esforço, até ao limite do insuportável para qualquer humano, mas suportável para a maioria deles.
Joana Emídio Marques inicia o seu capítulo mais forte, logo o primeiro, e olha, com emoção e precisão literárias, para os surrealistas. A emoção não fere a narrativa, reforça a vontade de nos dizer que foram aqueles surrealistas, avessos ao poder qualquer que fosse, a mostrar o desespero de viver-se em ditadura. Mais: de viver em ditadura em Portugal. Porque se todas as ditaduras são impossíveis de se viver e mesmo de sobreviver dignamente, o estado de ter nascido neste canto europeu ainda torna a coisa mais capciosa. Foi o que aconteceu desde 1949 em que os surrealistas tentaram formar-se em grupo. Dificilmente para espíritos tão livres quanto o eram desde início e muito novos, na casa dos vinte, tirando Cesariny já trintão. Quando me referia a emoção, como leitor e ao fazer esta ficha de leitura, esta foi-me entregue pela autora quando de uma forma clara utiliza magistralmente o registo biográfico com a poesia, prosa, pintura, instalação ou escultura que saíram das mãos destes homens e algumas mulheres (poucas, aliás. Contam-se, talvez, Natália e Isabel Meirelles). Ler neste ensaio a vida e obra de gente que nunca vergou, que polemizou, que se estava a marimbar para a vida, que queria atingir um grau de ascese poética com um vigor desconhecido até então, só se pode aferir com emoção. Essa emoção é-nos direcionada para as vidas de um Manuel de Castro (filho de um ministro de Salazar que nunca superou uma morte trágica e ainda mal contada da mãe), de um António José Forte, de um Mário-Henrique Leiria, de um António Maria Lisboa (que morreu aos vinte e cinco anos depois de destruída grande parte da sua obra pela família), de um José Escada, de um José Sebag, de um Alexandre O'Neil, de um Pedro Oom (que não resistiu à emoção da queda do fascismo), de um Manuel de Lima ou de um Ernesto Sampaio. Entre outros que formavam o grupo do Café Gelo (negado como grupo por Herberto Hélder) invadido violentamente pela polícia num dos mais aguerridos 1º de Maio de 1962 onde se contaram dois mortos e centenas de feridos em Lisboa.
A coerência de «Notícias do Bloqueio» mostra-se ainda pela viagem crítica de Joana Emídio Marques para com figuras ímpares que dão força a uma contestação social que anda inevitavelmente de braço dado com as vivas experiências literárias como o austríaco Karl Kraus, Robert Walser, Stig Dagerman ou Sylvia Plath (esta última com a contribuição vivida com ela por Hélder Macedo).
As palavras da autora são claras, para quem se assume como jornalista literária algo desencantada, não deixam dúvidas: «(...) Os tempos não estão para subtilezas, como não estão para a Cultura, nem para as utopias. É preciso fazer dinheiro, ter prestígio, ser famoso, ter sucesso (seja lá o que isso for) para ter direito a ser falado pelos média. A banalidade tenta recobrir a Cultura com uma superfície lisa, polida e sem atrito, sem zonas de resistência, onde tudo o que é reproduzido se destina a ser consumido e a gerar mais dinheiro. Essa lisura que recobre o espírito da nossa época, impõe, como sendo Cultura, aquilo que não é mais do que mercadoria supérflua, e o consumo desenfreado como sinónimo de felicidade e bem-estar - sobretudo, para nos convencer de que tudo o que circula no mundo se destina a um progresso, sendo progresso sinónimo de bem, de bom e de belo. (pág.9)».
«No entanto, cheira a podre. É a crítica literária. Actualmente, qualquer crítica negativa, não ou exultante a um livro, a um filme, a um trabalho discográfico ou a um espectáculo é considerada bullying ou ''discurso de ódio''. Posta de parte como uma filha aleijada, a secção de Cultura dos jornais foi perversamente esvaziada de jornalistas e tomada de assalto por pessoas que vêm de cursinhos de literatura, candidatos a escritores, pessoas de confiança dos grandes grupos editoriais, enfim: gente, gentinha, gentalha que vê no trabalho do jornalista cultural uma forma de amealhar capital simbólico para se tornar conhecido, para publicar os seus próprios livros, etc.(...) (pág13)»